Bula de Livro: Kramp, de María José Ferrada

Bula de Livro: Kramp, de María José Ferrada

Li “Kramp”, de María José Ferrada, e gostei. Na verdade, é um livro memorável. Sabe quando somos crianças e temos a impressão de que tudo que vemos e vivemos é enorme, intenso e mais significativo do que quando somos adultos? A fruta é mais doce, o parque de diversões parece imenso, a roda-gigante é colossal, nossos pais são heróis e o carro nos leva para os lugares mais improváveis possíveis. Kramp é sobre isso. Sobre a magia da infância e sobre a passagem dela. É sobre mudança.

M, a narradora, é uma garota de sete anos, que se torna, naturalmente, ajudante de caixeiro-viajante, a profissão do pai, D, e sente orgulho de sua atividade. Por vários motivos M está deslumbrada. Um deles se deve à sua capacidade de atuar e influenciar pessoas. Tem o olhar magnético e expressões que treina na frente do espelho, para convencer o comprador e melhorar a eficiência das vendas dos produtos Kramp que, segundo D, são ferramentas feitas para durar.

Kramp
Kramp, de María José Ferrada (Moinhos, 88 páginas)

Nas aventuras de M e D eles encontram figuras icônicas, peculiares, duvidosas, que narram histórias ainda mais inusitadas que eles próprios. Entre um cigarro e outro, pois aprendeu a fumar muito cedo, na companhia de D, ela reflete sobre o tempo e o espaço e aprende lições de mundo nas cafeterias e nos balcões das lojas que frequenta com o pai. Eles percorrem cidades vendendo e cobrando vendas dos produtos Kramp. Para M “D não era lá grande coisa como pai, mas era um excelente patrão”.

Maria José Ferrada, assim como Juan Pablo Villalobos, em “Festa no Covil”, usa a voz de uma criança, ainda mais verossímil, para contar os episódios de uma infância intensa, com observações interessantes, pois M é profundamente espirituosa e inteligente. Ela organiza o mundo visto por seus olhos matemáticos, com uma geometria estruturada, com filosofia e ordem, pois M sempre tem sempre um conjunto de soluções para as situações difíceis em que se encontra. E inventa expressões e definições para os arranjos da vida que tenta compreender, tais como: “sensação de buraco” (Tristeza que você sente sem que seja sua) ou “inseto da sorte” (Um inseto que pousa justamente no lugar em que a vida toma um curso diferente).

O ponto alto, a “moral da história”, reside no fato de que M, ao amadurecer precocemente, revisita as aventuras do passado, os lugares onde foi feliz e ganhou suas recompensas pela sua perspicácia e destreza em ser ajudante de caixeiro-viajante, e percebe que nada pode ser recriado. Nenhuma alegria do passado, criada sem causa aparente ou explicação razoável, pois simplesmente acontece, pode ser revivida depois da passagem do tempo, a não ser na memória. A magia se foi. E percebemos que M criança, também, é mais interessante que a M madura. Pois o tempo cuida de mudar tudo. Cuida de mudar-nos, todos!


Livro: Kramp
Autor: María José Ferrada
Tradução: Silvia Massimini Felix
Páginas:  96 páginas
Editora: Moinhos
Nota: 8,5/10