Ensaio sobre a saliva

Ensaio sobre a saliva

Em terra de cego quem tinha um olho lia um livro. Enquanto explicava a importância do hábito da leitura na formação de um ser humano, enquanto cerzia meias, Tia Jerusaleta, ex-professora do ensino fundamental, introduzia a extremidade da linha entre os lábios, molhava com cuspe e experimentava enfiar um camelo pelo buraco de um rico, ou melhor, experimentava enfiar a linha pelo buraco de uma agulha. Tio Fidelmino, seu esposo de ascendência italiana, médico de postinho de doenças, aposentado pelo Estado, sem saber que criava um monstro dentro da própria próstata, emprestava dinheiro a juros, apostava em galos de briga e umedecia o polegar com esputo para contar cédulas de cruzeiros. Eu amava aqueles velhos. Em geral, eu me dava bem com gente velha. Provavelmente, porque permitia que gastassem saliva comigo, experimentados que eram em bem viver, em mal viver e em conviver com as dúvidas existencialistas à beira de esticar as canelas.

Fui um menino de comportamento padrão, mas, tinha lá as minhas esquisitices. Como enfiar a mão embaixo da torneira para me certificar de que não a esquecera pingando. Como examinar a própria bunda em frente ao espelho para descobrir que ela não era rachada ao meio. Como cuspir sobre uma fila indiana de formigas que vinham se alimentar dos resquícios de catarro na pia do banheiro. Então, adveio a puberdade e, com ela, o sorvedouro de testosterona, as gônadas fumegando como trens descarrilados, além do alto consumo de cuspo para lubrificar a palma da mão, enquanto fazia amor com Sônia Braga, Rita Cadillac e grande elenco.

Meu pai escumava os cantos da boca, enraivecido com os meus banhos demorados. “Desliga esse chuveiro, criatura! Virou sócio da empresa de saneamento?!”, ele ralhava. Mamãe, que não era muito afeita ao sexo, mantinha uma fé comovente. Molhava com saliva o polegar e o fura-bolo para apagar o pavio da vela. Rezava para salvar o casamento. Queria viver com o meu velho até que a morte os separasse, mas, acabaram separados pela falência do amor e pelo intermédio de um advogado especialista em causas de família. O que pagaram de honorários advocatícios ao sujeito dava para trocar de carro e de mobília.  

Antes disso, todavia, tivemos as viagens de Kombi. E a vertigem. E a sensação de morte iminente por sacolejar no banco detrás. E as cusparadas pela janela, para desfazer o embrulho no estômago, para não ter que vomitar dentro da lata de leite em pó que servia de latrina obrigatória para a irmandade. Era preciso chegar até a Bahia. Vivos ou mortos. A Kombi nunca parava, senão, para o abastecimento obrigatório e para troca do filtro-de-ar do motor, sufocado pela poeira. Babávamos feito cães raivosos, exceto o irmão caçula, cujas vísceras pareciam não se importar nem um pouco com os solavancos da Kombi ao longo das costelas de vaca da estrada de terra. Observando pela janela a paisagem árida e o pouso triste de urubus macambúzios, eu pensava que ia ver Jesus antes de ver o mar, o que não deixava de ser uma lástima. Contudo, nada de ruim sucedeu, além da salivação abundante e do medo imbecil da morte no auge da puberdade.

Houve um tempo em que as ruas pertenciam às pessoas. Não eram os carros que mandavam na cidade, muito menos, os larápios. De tal forma, que se podia caminhar à noite por uma rua deserta, sem medo de ser trucidado por um facínora ou currado por um maníaco. Futebol. Jogava-se bola, todo santo dia, na porta de casa. Todo moleque tinha o sonho de se tornar um jogador de futebol, tipo um Zico, tipo um Rivelino, tipo um Roberto Dinamite. Eu catava no gol com luvas de pedreiro. E cuspia nelas, por mania, por charme, por garantia e por maior aderência, para me defender dos petardos dolorosos disparados pelo Vilibaldo, um marmanjo que chutava forte como um cavalo e que vivia despejando cusparada sobre os meninos mais novos, só para provocar briga e bater neles.

Um dia, cansados daquela indignante chuva de cuspo, juntamos quatro ou cinco humilhados para dar uma pisa no desgraçado. Só mesmo quem nunca tomou esputadas na cara para achar que desgraçado seja um xingamento demasiadamente forte. Muitos anos depois, fiquei sabendo que o Vilibaldo tinha servido ao regime militar, alcaguetado estudantes secundaristas e herdado a fortuna cabulosa do pai. Contudo, nada acontecia por acaso: acabou acometido por um derrame cerebral subversivo que o condenou a jazer sobre um catre domiciliar, pelo resto dos seus dias, expelindo uma baba ácida, pegajosa e nojenta sobre si mesmo.

Aquela coisa de trocar saliva com as garotas me deixava cabreiro. As aulas de biologia falavam em milhões, em bilhões de micróbios dentro da boca de um ser humano normal. Beijar outra pessoa parecia arriscado demais, mas, eu não tinha certeza se podia confiar na informação daqueles padres. Corria à boca miúda, nos bastidores escolares, que um ou outro pederasta do Senhor andava passando a vara na meninada que precisava de nota.

Como dizia o poeta, a vontade crescia como tinha de ser. Até o dia em que conheci Glorinha, uma garota que beijava de língua, sem jamais usar a própria língua, por mais estranho que isso lhes possa soar. Aquela perseguição tátil pelo céu da sua boca era infernal. Terminamos o affair mais rápido do que o evacuar de um gnu sobre a savana africana.

Namorar era bacana, um trocadilho infame, um adjetivo que ninguém mais usa hoje em dia. Hoje em dia não deixa de ser uma espécie de redundância, eu sei, ora, que se dane. Prefiro ser redundante do que ser pedante. Naquela altura da vida, eu já estava me entendendo muito bem com os vírus e com as bactérias. Éramos brothers. Tinha perdido aquele medo besta de morrer. Vieram as novas paixões, outras namoradas estranhas e aquele gosto diferente em cada boca, aquele gasto descomunal de tempo e de saliva. Tudo em desalinho com os esdrúxulos alertas sanitários durante as aulas de ciências biológicas. Lógico que eu segui os meus instintos. Tudo em prol da indispensável perturbação mental. Tudo pela busca perdulária e inconsciente de perpetuação da espécie, nem que fosse às custas de muita paixão e de muito cuspe.