Os tamancos da Dorinha

Os tamancos da Dorinha

Encontrei o Nelson na esquina da Pegasus com a Canário de Asas.

— Bons dias, Vencio!

— Bom dia, Nelson. Como vai?

— Piorando a cada dia, graças a Deus.

— Quais as novas, chapa?

— Nem te digo. Ando gamado por um broto.

— Como assim, Nelson? Separou-se da Amélia?

— Jamais faria uma burrada como essa. Amo Maria Amélia. Amo também o sobrado, as quitinetes e o Simca Chambord. Casamento à moda antiga, meu ilustre. Do tipo “até que a morte os separe”. Estamos firmes como os cravos da santa-cruz.

— Quem é a vítima?

— A beldade, tu queres dizer.

— Que seja.

— Dorinha. A novata da seção. Vinte e dois aninhos de formosura que se equilibram sobre um par de tamancos que nem te conto.

— Que mulher vai para o trabalho usando tamancos?

— Mulheres como Dorinha. E ela o faz com enorme elegância, para não dizer, lascívia. Observei-a enquanto datilografava bobagens para o editor chefe, aquele comunista safado. Cruzava as pernas de louça, alvas como a praia de Ipanema, e balançava os pezinhos, alternadamente. Sei que fazia aquilo por mim, só para me provocar. Os pés. Observaste os seus pés?

— Não, Nelson. Ando meio ocupado ultimamente.

— Que desperdício, Vencio. Tão jovem e tão devotado ao trabalho. Vais morrer sem conhecer o bem-bom da vida, meu dileto amigo. Dorinha possui pés de estirpe egípcia. São formidáveis. Presumo que calcem 35. Os hálux, delicadamente proeminentes, são bojudos, colossais, na medida certa e se insinuam tenros, confiantes, como figos maduros prestes a serem mordiscados. Os demais dedinhos, coitadinhos: encantadores, carregam unhas pintadas com esmero, delicadeza e bom gosto, patrioticamente perfilados em ordem decrescente, do segundo pododáctilo até o dedo mindinho. Magníficos. Dorinha possui pés magníficos. Tu sabes o quanto me aprazem as patas de uma gazela.

— Quem conta um conto aumenta um ponto. Continue, Nelson. Bebe um café comigo?

— Tu pagas? Estou desprovido.

Além de bon-vivant, de traidor contumaz da esposa, Nelson era um baita muquirana. Entramos na Lanchonete da Venusdete e pedi dois cafés com biscoitinhos de nata. Nelson começou a assediar a balconista, então, puxei-o pelo braço até uma mesa que ficava no fundo da birosca. Pediu fogo e acendeu um Continental.

— Nelson, você precisa se controlar. Não pode se insinuar para toda e qualquer garota que encontra pela frente. É muito constrangedor.

— Preciso de um favor teu, caríssimo.

— Lá vem você… O que é dessa vez?

— Maria Amélia viajou hoje cedo. Foi visitar a megera da mãe em Paraty e só retorna no domingo.

— E daí?

— Ainda tens aquele apartamento em Botafogo?

— Eu moro lá, Nelson. E não me pertence. É um imóvel alugado.

— Preciso que tu me emprestes hoje à noite. Dorinha topou se encontrar comigo.

— Por que não usa uma das suítes do sobrado onde você mora? Afinal, a casa é grande, repleta de quartos.

— Questão de princípios, meu bom amigo.

— Entendo. Sinto muito. Não posso fazer o que você me pede, Nelson.

— Por quê? Tu és um homem solteiro, livre, desimpedido. Podes muito bem dormir na casa de um colega e me fazer esse obséquio. Sei que me compreendes. Sei que posso contar contigo. És ou não és um amigo de verdade?

— Não tem nada a ver com amizade, Nelson. Você sabe muito bem que eu trabalho à noite escrevendo os meus próprios livros. Além do mais, Maria Amélia reserva alta estima por mim. Não posso participar dessa farsa.

— Tu és mesmo um cagalhão, Vencio. Um legítimo borra-botas. Aposto que comunista também. Nunca me enganaste. Estou prestes a faturar um docinho-de-coco, uma teteia, uma deusa com pezinhos ancestrais, uma verdadeira princesa das mil e uma noites, e tu te negas guarida. Que decepção. Que grande amigo tu és. Flamenguista de merda.

— Nelson, preciso ir andando. A gente se encontra na segunda-feira. Esquece essa pequena. Vai apostar em cavalos no Jóquei que você ganha mais.  

Paguei a conta no balcão e caminhei até a estação de trem mais próxima. Foi a última vez que nos falamos. Ele não apareceu no diário na segunda-feira. Muito menos, Dorinha. Ficaram desaparecidos até quarta-feira, quando ouvimos pelo Rádio Nacional que o corpo de Nelson Rodrigues fora encontrado dentro de um conto que eu escrevera, num singelo quarto de hotel situado no Leme. O sujeito estava deitado sobre a cama de casal, nu, com os braços estendidos acima da cabeça e as mãos trespassadas por cravos enormes que as fixavam na cabeceira da cama, como se fora ele o próprio Cristo crucificado. Não demorou, a polícia pôs as mãos na criminosa. Durante o depoimento na chefatura, a jovem facínora, que tinha encantado os agentes com sua desmesurada formosura, confessou o crime em detalhes abjetos. Após matar o amante com veneno de rato colocado na cuba libre, cavalgou nua sobre o seu cadáver e martelou pregos adquiridos numa ferragista do Méier, usando os tamancos de madeira. E que pés magistrais ela tinha.

*Dedicado a Nelson Rodrigues