Apenas para mentes inteligentes, filme surpreendente na Netflix vai te abalar como um terremoto Divulgação / Fosforescente

Apenas para mentes inteligentes, filme surpreendente na Netflix vai te abalar como um terremoto

Há algumas boas abordagens a respeito do casamento, a depender do público que se deseje atingir. O mistério que une duas pessoas que se amam a ponto de não ser capaz de sequer imaginar suas vidas muito bem ligadas pode ser tomado por um jogo de roleta, em que a ninguém cabe explicações ou cobranças sobre a felicidade ou a desdita de quem quer que seja. O mexicano Salomón Askenazi elabora seu “Duas Vezes Você” baseando-se nessa ideia, exaltando a beleza muitas vezes oculta da instituição falida mais invejada de todos os tempos, mas lúcido o bastante para procurar com lupa as imperfeições não de um, mas de dois casais nada prosaicos, vulneráveis como todos os outros às turbulências da grande aventura da vida em comum. Tal pretensão fica clara logo nas primeiras sequências do roteiro de Askenazi: a trilha de Daniel Adissi e Sebastián Zunino consegue captar o espírito do onipresente pouco caso com tudo que reina no mundo dos nossos dias, em especial no que toca ao amor e seus muitos temas correlatos. Fica evidente também um gosto por se imiscuir no que não se revela, no que vive muito mais abaixo da superfície de todas as coisas, e os pressentimentos que assaltam os personagens rondam o espectador de igual modo.

O diretor-roteirista dispõe o grupo cuja intimidade devassa num salão de festas cuidadosamente decorado para a celebração do casamento judeu — religião em que ele mesmo fora criado — que prestigiam. Adissi compõe uma das quatro incógnitas dessa equação na pele de Benny, o Feio, casado com Daniela Cohen, de Melissa Barrera; do outro lado, Tania e Rodrigo, vividos por Anahí Dávila e Mariano Palacios, parecem totalmente integrados, de tal maneira que, à primeira vista, não se enxerga diferença nenhuma entre um e outro par. Askenazi se vale de muita sutileza, com as conversas despretensiosas dos quatro e as posteriores inconfidências de Daniela e Anahí no banheiro, para pontuar a falsa serenidade em suas relações mais secretas e começar a desenvolver o argumento central, uma troca de casais sem pornografia, que degringola na tragédia que os vitima depois de uma brincadeira estúpida.

Cômico no início, quiçá até desabridamente engraçado, “Duas Vezes Você” assume cores bem mais funestas do segundo ato em diante, malgrado a ótima fotografia de Beto Casillas destaque os tons de azul do quarto dos casais como o céu decaído, tornado o autêntico vale de lágrimas que Benny, Daniela, Tania e Rodrigo têm de atravessar. Utilizando um recurso estilístico sofisticado, que pode confundir em alguns trechos — mormente a frequência com que é empregado —, Askenazi encadeia flashbacks de modo a fazer um retrospecto pela jornada dos quatro até o evento que sela seu destino irremediavelmente, conduzindo também a audiência por um passeio pelas consciências deles. Há um bocado de David Lynch em seu trabalho, sobretudo o Lynch de “Cidade dos Sonhos” (2001) e muito do terror psicológico do Kubrick de “O Iluminado” (1980); entretanto, o diretor encaminha para o desfecho um filme inventivo, organicamente polêmico, com suas elucubrações honestas acerca do suicídio e da concupiscência, e o mais importante, que repele o óbvio. Nos dias de hoje, este é um grande feito.


Filme: Duas Vezes Você
Direção: Salomón Askenazi
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Fantasia
Nota: 8/10