A história da publicação de Doutor Jivago, o romance que deu o Nobel de Literatura a Boris Pasternak

A história da publicação de Doutor Jivago, o romance que deu o Nobel de Literatura a Boris Pasternak

Ao lado de Púchkin, Maiakóvski, Óssip Mandelstam, Anna Akhmátova e Marina Tsvetáieva, Boris Pasternak é um dos mais notáveis poetas russos, parcamente traduzido no Brasil. O sucesso do romance “Doutor Jivago” (Companhia das Letras, 616 páginas, tradução de Sonia Branco; Aurora Fornoni Bernardini traduziu os poemas), publicado em 1957, na Itália, ofuscou sua poesia, que se tornou menos conhecida do que a prosa, que não era o seu forte.

Doutor Jivago
Doutor Jivago, de Boris Pasternak (Companhia das Letras, ‎616 páginas)

Espécie de “Guerra e Paz” (de Liev Tolstói) do século 20, “Doutor Jivago” é um retrato não edulcorado da Revolução Russa de 1917 e de como o socialismo sufoca a individualidade. Pasternak não era ingênuo e sabia que o romance não agradaria à cúpula comunista, mesmo pós-Ióssif Stálin, que morreu em 1953.

Em 1956, Nikita Kruschev, o novo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, fez a crítica pública do stalinismo — chocando comunistas do mundo inteiro. O novo líder máximo da URSS, que havia sido um stalinista fervoroso, disse, com todas as letras, que, como governante, Stálin havia sido um “assassino”, um “monstro”. O “degelo”, uma ligeira abertura — a primeira glasnost do país —, por certo convenceu Pasternak de que seria possível publicar “Doutor Jivago”.

No entanto, a desestalinização não era completa e o regime comunista censurou o livro de Pasternak, que, mesmo desolado, decidiu agir.

No final de 2022, Ángel Gómez Fuentes, do jornal espanhol “Abc”, publicou a reportagem “O italiano que salvou ‘Doutor Jivago’”. O italiano é o jornalista Sergio D’Angelo, autor do livro “¡Publica Zhivago!”, que completou 100 anos recentemente.

Na década de 1950, vários italianos de esquerda decidiram estudar na União Soviética. O jovem Sergio D’Angelo perguntou ao italiano Giangiacomo Feltrinelli, dono da Editora Feltrinelli, se tinha interesse em “informações periódicas sobre literatura russa ou livros de ensaios”. Feltrinelli aprovou a proposta.

Interessado pela literatura russa, o comunista Sergio D’Angelo travou amizade com Pasternak. Os dois se encontravam com frequência. Francesca, filha do jornalista, contou à agência Ansa que sua família era convidada à casa de campo do poeta — o que, possivelmente, alertou a KGB, que estava sempre de olho nos contatos de soviéticos com estrangeiros.

Como confiava em Sergio D’Angelo, a quem estimava, Boris Pasternak decidiu entregar-lhe o manuscrito de “Doutor Jivago”. O escritor pediu-lhe que tornasse seu romance conhecido fora da União Soviética.

Ao entregar o texto datilografado a Sergio D’Angelo, em 20 de maio de 1956, Pasternak disse: “Estão todos convidados para assistir ao meu fuzilamento”. Na verdade, deu-se quase isto, quer dizer, o escritor passou por um processo de “cancelamento’.

De posse de “Doutor Jivago”, Sergio D’Angelo falou a Feltrinelli sobre o escritor e o romance. O jornalista levou o “tesouro” literário, “com as correções e rasuras originais”, para Berlim.

Na Alemanha Oriental, Feltrinelli, que era de esquerda, recebeu os originais. Quando decidiu publicá-lo, sofreu pressões severas da União Soviética. O presidente da União dos Escritores Soviéticos, Alexey Surkov, o visitou e aconselhou a não publicar o romance, alegando que era “antissoviético” e “anticomunista”.

Apesar de rezar pela cartilha comunista, Feltrinelli resistiu. Numa entrevista, o editor disse: “‘Doutor Jivago é um romance sobre tempos difíceis que atravessa o país. Fala de seres humanos e de sua luta pela vida. Contém muitas lições fundamentais que se aplicam a todos os seres humanos numa sociedade moderna”.

“Creio que numa sociedade livre não pode existir censura. O importante, para mim, é a qualidade. Não acredito que a arte literária pode ser julgada estritamente com base em problemas e esquemas políticos”, acrescentou Feltrinelli.

Os comunistas ficaram irritados por dois motivos. Primeiro, porque Feltrinelli estava mesmo decidido a publicar “Doutor Jivago”. Segundo, porque enfrentou a ortodoxia da esquerda ao postular a autonomia da arte ante a política e aos interesses políticos dos comunistas soviéticos.

Atendendo a Moscou, o Partido Comunista Italiano expulsou Feltrinelli de seus quadros. O Sindicato dos Escritores Soviéticos expurgou Pasternak. O escritor havia se tornado um “inimigo” do povo soviético. Como Liev Trotski na década de 1920.

Se o Partido Comunista “apagou” Pasternak na União Soviética, “Doutor Jivago” se tornou best-seller em vários países. O livro saiu na Itália, em 1957, pela Editora Feltrinelli. O governo soviético pressionou o escritor de tal forma que ele chegou a recuar a respeito da publicação, mas Feltrinelli lançou o livro assim mesmo. Pasternak ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1958, mas o governo da União Soviética impediu que o poeta e prosador fosse a Estocolmo recebê-lo.

A publicação de “Doutor Jivago” firmou a reputação da Feltrinelli como uma editora corajosa (enfrentar a poderosa União Soviética, ainda mais sendo de esquerda, não era para qualquer um) e de qualidade. Curiosamente, Feltrinelli, o dono da editora, radicalizou-se politicamente e, ao tentar cometer um atentado terrorista, acabou morrendo. Ele também teve o mérito de publicar o romance “O Leopardo”, do escritor siciliano Tomasi di Lampedusa.

Pasternak morreu cancelado e isolado na URSS

Pasternak morreu em Moscou, aos 70 anos, em 1960. “Doutor Jivago” permanecia inédito na União Soviética, mas se tornara famoso em todo o mundo. Stálin, que morreu em 1953, admirava o poeta e, por isso, não o mandou para o Gulag. Proibia-o de publicar, como, mais tarde, Kruschev, mas decidiu não prendê-lo nem fuzilá-lo.

Boris Pasternak
Boris Pasternak, em 1959 | Foto: Wikimedia Commons

Certa feita, Stálin ligou para Pasternak e perguntou se o poeta Óssip Mandelstam era importante. No lugar de dizer logo que era, o bardo enrolou e disse que precisava falar pessoalmente com o ditador — sobre a vida e a morte —, que desligou o telefone e não mais o atendeu. Mandelstam foi enviado para um campo isolado, onde morreu, de tifo, aos 47 anos.

A publicação de “Doutor Jivago” na Itália e depois em outros países, como os Estados Unidos, irritou de tal maneira os líderes comunistas que Pasternak foi isolado e viveu no ostracismo, como se fosse um escritor menor. Suas obras foram proibidas na União Soviética. Só foi reabilitado em 1987, durante a glasnost e a perestroika de Mikhail Gorbachev.

O belo filme “Doutor Jivago” (com Omar Sharif e Julie Christie), de David Lean, ganhou seis Oscar, em 1965.

O livro “Feltrinelli — Editor, Aristocrata e Subversivo” (Conrad, 400 páginas), de Carlo Feltrinelli, conta a história do ousado editor que publicou “Doutor Jivago” e o tornou conhecido em todo o mundo. A obra relata que Feltrinelli enviou dinheiro para o guerrilheiro brasileiro Carlos Marighella.

Carta de Boris Pasternak para Feltrinelli cita Sergio D’Angelo

Caro Senhor,
Não tenho palavras suficientes para expressar-lhe meu reconhecimento. O futuro nos recompensará pelas ignóbeis humilhações sofridas. Oh, como sou feliz pelo fato de nem o senhor nem a Gallimard nem a Collins terem se deixado enganar por aqueles apelos idiotas e brutais que exibiam minha assinatura (!), assinaturas um tanto enganosas e falsificadas, porque me eram arrancadas com uma mistura de fraude e violência. Chegar à surpreendente arrogância de se indignarem pela “violência” que o senhor teria exercido contra minha “liberdade literária”, usando em relação a mim exatamente a mesma violência sem mencioná-la. E todo esse vandalismo, camuflado de cuidados por mim, pelos sacros direitos do artista! Mas logo teremos alguns Jivagos italianos, alguns Jivagos franceses e ingleses, alemães — e um dia, quem sabe, Jivagos geograficamente distantes, mas russos! E já é muito, muito mesmo, vamos fazer o máximo que pudermos, e aconteça o que tiver que acontecer!

Não se preocupe com o dinheiro a que tenho direito. Vamos protelar as questões pecuniárias (para mim não existe nenhuma) para quando tivermos um sistema mais sensível e mais humano, quando, no século 20, for possível manter uma correspondência, viajar. Alimento em relação ao senhor uma confiança ilimitada e tenho certeza de que saberá cuidar daquilo que destinou a mim. Só no infeliz caso de resolverem cancelar meus subsídios e cortar meus suprimentos (seria uma ocorrência extraordinária e não há nada que leve a prevê-la), terei de encontrar uma forma de avisá-lo para aproveitar as ofertas que me fez através de Sergio, que, como diz seu nome, é um verdadeiro anjo e dispensa todo seu tempo e sua alma a este lamentável episódio.

Queira aceitar meus fervorosos sentimentos.

B. Pasternak