Nove de maio, onze de agosto

Nove de maio, onze de agosto

E agora, o que fazer com a garotinha dependurada em seu pescoço, que o chamava de Pai?

A primeira providência foi comprar uma agenda para ela. E deixar os acertos por conta dos desconcertos do dia a dia. Vale dizer: deixar que o inusitado acontecesse à revelia, e se possível manter uma distância segura para que o dia a dia não o paralisasse completamente.

Claro que era demais para ele, que ele não conseguiria. “Que dia você faz aniversário, tio Má?” Foi a primeira coisa que a garotinha anotou na agenda. Isso mesmo, a data de aniversário dele. Então ela escreveu, com aquelas letrinhas redondas e demoradas: “9 de maio”. E, depois, anotou o dia do aniversário dela: “11 de agosto”, e disse: “Meu pai também faz em agosto. A gente pode ter dois pais?”

Saudades da solidão de antes, uma solidão irrecuperável. Que pedia exatamente aquilo que o desconcertava no dia a dia. Em todos os aspectos: sentimentais, sociais, de convívio genérico e íntimo. Atravessar a rua e ir comprar pãezinhos já não era algo tão prosaico como antes, mas uma atividade improvável e comprometedora, cujo pressuposto era a inclusão naquilo que ele jamais poderia e nem pretendeu ser incluído.

Uma coisa é comprar uma Coca-Cola de dois litros para os outros, outra coisa é ser a garrafa Pet, responsável pelo conteúdo, e pelos arrotos da garotinha. A conta que fez a vida inteira, dizia: excluir, olhar de soslaio, ir de encontro aos buracos, enterrar-se vivo. A regra era arrotar para dentro, engolir o próprio veneno e, por último, cuspir no prato em que comeu.

De repente, tinha de fazer outra conta: era o responsável pela refeição e pelos gases alheios — e ainda tinha de amar e ser amado, esperar o troco como se os centavos fossem as notas altas, e não o contrário. Ele adorava ouvir a garotinha arrotar, porém não conseguia acompanhá-la.

Tinha certeza que havia um complô de sorveteiros, nuggt’s, estojos e mochilas cor-de-rosa. Ele via Minnies e galinhas pintadinhas por todos os lados. Era como se tivesse perdido a estratégia, e agora fosse o alvo de si mesmo. O porteiro o chamava de doutor, e o português da padaria havia trocado o bigode por tranças rastafari. Pior: o português havia perdido o sotaque, tinha o antebraço todo rabiscado de tatuagens, e usava um alargador de lóbulos no lugar do lápis atrás da orelha. Cazzo, o que se passa?

Uma vida inteira vivida na contramão. Sem beijo de namorada, nem endereço fixo, e muito menos agendas. No tempo-espaço da dissipação e da putaria, bicho solto, cão sem dono. Até que um dia um caminhão carregado de realidade atropela o xarope, e aí ele se dá conta que o português da padaria tem idade para ser o irmão mais velho da garotinha da agenda, é isso o que se passa.

Acredito que às vezes Ozzy Osbourne deve se olhar no espelho e perguntar a mesma coisa: “what happened?” O tempo é feminino, meu caro Ozzy. E você foi engolido por ele.

Via de regra os maiores problemas sempre se transformavam nas melhores soluções. Mas agora era diferente. A questão do convívio social, por exemplo. Não consigo desempenhar o papel do cara que vai à praia, e lê um bom livro enquanto a mulher toma sol, e a enteada brinca na areia. Para quem não sabe, livros são objetos retangulares que contém um monte de palavras envenenadas (ao menos os que me interessavam eram assim…).

Bem, eu dizia que é quase impossível comprar biscoitos de polvilho, e passar bronzeador nos ombros da mãe da garotinha. Embora eu faça tudo isso, e tenha um tesão maluco por melecar ombros femininos de óleo. E embora engane a mulher e sua linda filhinha, e o vendedor de biscoitos de polvilho também, apesar de tudo não consigo me enganar a ponto de separar essa situação da mesma situação vivida pelo garotinho que, há quarenta e tantos anos, cavalgava a babá, e que jamais interessou-se em construir castelos de areia na praia: aliás, é muito confortável dar de ombros para o ridículo alheio, e viver uma vida de autista quando se tem oito anos de idade.

Eu usava e abusava da minha condição de “esquisito” — e se Gessy, a babá que cuidava de mim, não tivesse morrido… eu não iria, ah não mesmo, não iria me dar ao trabalho de escrever livros. Ah, o lombo da Gessy …

Não estou dizendo que queria substituir mamãe e Cacá, a mãe da garotinha da agenda, por Gessy… aí também seria demais, e seria o ideal.

Também não quero dizer que continuo o mesmo garoto empacado — que se interessava mais em cavar buracos do que em construir castelos de areia — mas digo que entendi porque ele-eu-o-outro cavávamos aqueles malditos buracos: de certa forma, o garoto sabia que nunca sairia daquele lugar, ele havia se enterrado fundo demais, e sabia que, um dia, ele mesmo — o garoto esquisito — além dos biscoitos de polvilho ia ter de comprar Chicabon para uma linda garotinha, sua enteada, e que ficaria paralisado diante do sorveteiro porque não era ele quem comprava o sorvete, mas seu Pai.

E os dois, ele e o Pai, eram iguaizinhos, a mesma incapacidade e a falta de jeito para conferir o troco, quarenta e tantos anos depois, tanto um como o outro — inapelavelmente — seriam enganados pelo sorveteiro.

Todavia, agora era minha vez. O chicabom derretia, a garotinha estendia os braços, e olhava para o sorveteiro e para mim, e eu não sabia o que fazer. Impossível esconder o vexame.

E mesmo que largasse a menina falando sozinha, e fugisse da praia e deixasse todas os encantos e delicadezas do mundo para trás junto com ela e a mãe, ainda que negasse a existência do pôr-do-sol, e entupisse o nariz de algodão feito um cadáver, ainda assim, não evitaria o cheiro delicioso e lambuzado de óleo de cenoura, e mesmo assim, se tentasse ir de encontro a solidão do passado, e mandasse o português da padaria para Trás-Os-Montes, mesmo assim não conseguiria ter de volta a solidão de antes.

Era tarde demais para ser indiferente e atravessar as ruas apesar dos carros que passavam em alta velocidade; antes ele atravessava as mesmas ruas às cegas, pronto para a colisão, mas agora, um caminhão de mudanças metafísico o atropelara, e ele não havia morrido como das outras vezes nem sentido dor, mas felicidade.

O problema é que a felicidade não o ajudava em nada, apenas o paralisava, era demais para ele conferir o troco do sorveteiro e, ao mesmo tempo, assimilar que tinha idade para ser o pai do português rabiscado da padaria, era demais. Alguma coisa estava muito fora do lugar. A mãe da garotinha abria as pernas para ele, e ele a penetrava como se fosse um animal em vias de ser extinção, a caminho do abate. Sôfrego, mórbido, premido — e feliz da vida.

A garotinha sorria, e pedia a mão para atravessar as mesmas ruas nas quais tantas vezes ele fora atropelado, a garotinha que o chamava de papai-chicabom, a mesma garotinha que anotou em sua agenda a data de aniversário dele, e dela: nove de maio, onze de agosto.