Apocalipse now

Apocalipse now

Creio que só existe um livro capaz de subverter a modorra, de gerar desconfiança e fazer “ouvir uma dúvida” como elegantemente sugeria Roland Barthes na época em que ateava fogo nos parquinhos do Collège de France.

Isto é, só existe um livro capaz de provocar atritos e deslocamentos e, em última análise, desviar a atenção do casal de barbudinhos que se beijava com sofreguidão na Praça de Alimentação do Center Norte. Foi a conclusão que cheguei depois de presenciar a cena que, daqui a pouco, pretendo descrever para vocês.

O mais assustador, porém, é que as mensagens deste livro não primam exatamente pela tolerância e nem são muito conciliadoras. Na verdade, são 73 livros juntos num só volume que se dividem, ou melhor, se divorciam definitivamente em antes e depois do Cristo, e cuja primeira parte, mais conhecida por “Antigo Testamento”, é um verdadeiro holocausto recheado de putaria, demência e selvageria, e algumas pérolas da literatura universal.

Digamos que o conteúdo é confuso, repulsivo, ameaçador, beligerante e nitidamente anti-barbudinhos apaixonados (já falo deles, um minuto). Como se a segunda parte que leva o título de “Novo Testamento” e a chegada reveladora do Cristo — um corte epistemológico radical ou a chave hermenêutica para a compreensão do conjunto — fosse apenas uma excentricidade, um luxo em meio à barbárie.

Antes de contar o que presenciei, me ocorreu que a Bíblia foi pensada para a tecnologia de nossos dias, desde a gênese. A maior parte dos seus versículos, especialmente os Salmos, contam menos de 240 caracteres. Todos nós que temos uma conta no tuíter (menos eu) estamos — inopinadamente? — reescrevendo o “Antigo Testamento”. Não vai demorar muito para chegarmos ao Apocalipse, sem precisar passar pelo Cristo.


Aos fatos.

Barbudinho número 1 mergulha nuggets no catchup, para logo em seguida servir o namorado. O casal apaixonado mata a sede e a fome um na saliva do outro. Máque-beijaço de língua.

Uma senhora vestida de urubu se aproxima, saca a Bíblia do coldre, e imediatamente interrompe o idílio dos barbudinhos citando Levítico, 20:13: “Um homem que deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticam ato repugnante. Terão de ser executados, pois merecem a morte”.

Os meninos recorrem aos seguranças do shopping. Os seguranças pedem para eles respeitarem a senhora, que continua vociferando: “Merecem a morte!”.

O barbudinho que servia os nuggets, que aliás calça coturnos, e está vestido com um tubinho Mondrian comprado na Renner, dirige-se ao barbudinho número 2 aos prantos: “I don’t believe, Eliséu! I don’t believe!!!”. A velha senhora continua praguejando: “Nem homens que se deitem com homens, nem ladrões, nem beberrões herdarão o reino de Deus”.

Brasil, 2022 d.C. A velha urubuzenta está transida quase em estado de epilepsia, cada vez mais possessa e ameaçadora: “Merecem a morte! A morte!!”

“Eliséu, faz alguma coisa!!! Eliséééuuuu!”


Nesse momento, Eliseu, o barbudinho de coque samurai, roda a baiana. Confusão generalizada.       

O livro que contém a palavra de Deus comprovadamente tem a participação do seu arqui-inimigo mais amado, Satã.  Daí o sucesso milenar, eu acho. 


Nos últimos anos, excetuando o intervalo desastroso provocado pela pandemia, as paradas gay e neoevangélicas arrastaram multidões que, apesar dos pesares, sempre continuaram na ativa — sem contar os passivos, os enrustidos e os infiltrados, de ambos os lados. Se nos últimos dez anos, o gado aparentemente era pacífico e estava sob controle, hoje a coisa mudou.

O botão do start nunca deu tanta sopa.

Quem acompanha os tuítes de Silas Malafaia e Tico Santa Cruz sabe do que estou falando.

Não adianta nada invocar a legalidade, a paz, o amor e a tolerância se, no frigir da omelete, tanto o “pastor” como o “músico”, oferecem a milhares de seguidores hostilidade e ódios recíprocos.

Malafaia e Tico são apenas uma gota no oceano, iguais a eles há miríades de outros “influencers” clamando por sangue e vingança, grávidos de serpentes e instintos homicidas.

Agora, com a chegada da campanha presidencial, essa fúria vai sair das redes sociais e chegará às ruas, bares, restaurantes & praças de alimentação que eu tenho a infelicidade de frequentar.

Quando os dois lados supostamente têm razão e não abrem mão dela em nome de Deus ou em nome da Purpurina, a resolução ou o único termo a que podem chegar é o confronto.

Falta muito pouco. Basta um descuido ou uma fagulha qualquer, e as duas forças (aqui não me interessa saber quem está do lado do “bem” ou do “mal”, estou apenas conjecturando sobre o final da picada) chegarão às vias de fato.

E o pior é que diante da multiplicidade de horrores, misérias e falta de perspectiva em que a geração zero-zero está mergulhada, o confronto não assombra mais como no século passado. As guerras e as carnificinas são apenas mais dois itens, dentre tantos, no combo de ameaças à sobrevivência da espécie humana sob a face da terra. Putin e os outros três cavaleiros do apocalipse que o digam.

E aí, bem, aí eu não vou dizer mais nada, ou seja, minha impotência — a mesma que me paralisou quando o barbudinho nº 2 avançou na direção do pescoço da inconveniente senhora, e disse: “limpo meu rabo cheio de porra com sua bíblia, crente de merda” — enfim, minha impotência será refletida no destino de quem, hoje, me ignora solenemente porque sou um homem branco, privilegiado e herege que habita uma torre de marfim e que não está nem aí para “o outro”. Pode até ser. Além do que sou velho, careca e barrigudo, uma múmia que vai votar nulo e só consegue falar através do próprio umbigo — e pelos cotovelos — para meia dúzia de tiozões nas mesmas condições e em vias de extinção.

Em tempo: praça de alimentação de shopping é o cu. Tenham todos um ótimo domingo.