Orwell versus Mãe Dinah

Orwell versus Mãe Dinah

Arthur Blair, filho de mãe com ascendência francesa e de um oficial da marinha britânica, nasce em Motihari, na Índia, sob domínio inglês. Bem cedo, ainda criança, é levado de volta para a Inglaterra e fica na ilha até completar dezoito anos. No ano de 1922, ele retorna à colônia para servir à polícia de sua majestade, mais precisamente na Birmânia, hoje Myanmar.

Nesse período aguçou o sentimento de inconformismo contra a política imperialista britânica, sobre a qual escreveu depois de desertar em 1927: “Servi na polícia das Índias durante cinco anos, ao longo dos quais passei a odiar o imperialismo, que eu próprio servia, com uma força que ainda hoje eu não sei explicar”.  O romance “Dias na Birmânia” e vários ensaios, como “Dentro da baleia”, “O enforcamento” e “O abate de um elefante” são frutos deste período, desse ódio “inexplicado”. Quando Arthur Blair passa a assinar George Orwell.

Nessa mesma época, Orwell põe a santidade de Gandhi em xeque: “Santos devem ser culpados até que se prove sua inocência”. O autor de “1984” acreditava que Gandhi era mais vaidoso que ele; curioso, quando eu morava no centrão de São Paulo, toda vez que ia almoçar no Nutrisom, o restaurante natureba que se localizava (ainda está lá?) defronte o “Estadão”, eu pensava nisso — genial.

George Orwell tinha o dom de pairar acima das calamidades que escolheu para si e acima das calamidades que a vida lhe reservou, bordejava não como um anjo, mas como um pensador que sabia agrupar os fatos e as consequências advindas desses fatos em escaninhos diferentes; julgava e acertava não como um árbitro ou um “crédulo intuitivo”, mas como homem de discernimento, e o mais notável, fazia isso sem precisar apelar para a imparcialidade, muito pelo contrário: a Orwell bastava ser livre, não se omitir e ser honesto consigo mesmo.

Um aviso! Você, que acredita no Pedro Bial, não tente fazer isso em casa, a liberdade pode machucar e/ou causar danos irreversíveis.

No texto que abre o livro “Dentro da Baleia e Outros Ensaios”, cujo título é “Por que escrevo”, ele diz: “escrevo porque existe alguma mentira para ser denunciada, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e penso sempre que vou encontrar quem me ouça”. Encontrou, meu caro. Putz, você não podia ter encontrado ouvinte mais atento.

Vivemos tempos de muita demagogia, falsos engajamentos e marketing tresloucado. De modo que o que se vende e o que se consome em todas as frentes — salvo as exceções de praxe — são oportunidades de negócios, tudo em nome da arte e da igualdade, como se uma coisa tivesse ligação com a outra.  Portanto, além da questão das misérias que somente fizeram se agravar nas últimas décadas, também a alma humana definhou, perdemos em liberdade e individualidade: essas duas forças que juntas poderiam ser chamadas George Orwell — o homem que investiu bravamente contra os totalitarismos de sua época.

Orwell jamais se omitiu. O tempo provou que muitas vezes ele esteve certo e sempre esteve sozinho.

Uma pena que tenha perdido a batalha, porque os totalitarismos turbinados pelos extremismos e pela demagogia continuam aí, firmes e fortes, repaginados e cobrando juros estratosféricos.

Creio que sufocar a possibilidade do grito individual é o pior dos crimes.

A propósito:  quem foi o último que gritou no deserto brasileiro, Glauber Rocha, o chato? A consequência desse sufocamento é visível na “arte” e nos artistas mequetrefes que nos são impingidos goela abaixo, visível na repetição (ou nas malditas “releituras”) do original que perdeu o viço e virou lixo reciclado.  Ao contrário do que nos ensinam as políticas de inclusão/correção (e de acordo com as previsões mais sombrias de Orwell), o coletivo existe somente em função de excluir o indivíduo e sufocar sua voz original.

Vejam só o que o autor de “Ensaios Dentro da Baleia” escreveu em 1940: “(…) quase com certeza estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias — uma era em que a liberdade de pensamento será o princípio de um pecado mortal e mais tarde uma abstração sem sentido”.

No alvo!  O pensamento e a originalidade jazem mortos e enterrados; atingimos um patamar cultural que se localiza abaixo daquilo que Orwell chamava de “abstração sem sentido”… e abaixo daquilo que os Visigodos chamariam de cu de cobra. Que tiro foi esse?

George Orwell escreve limpo, e escreve bem porque pensa bem e — repito — jamais se omitiu diante de sua consciência, nem quando elaborou uma lista de “criptocomunistas” para o governo britânico e dedurou Chaplin, Shaw e J.B. Priestley. Sacana? Talvez, porém verossímil.

Vejam só: “(…) a literatura estará condenada não somente em países que conservam uma estrutura totalitária; mas qualquer escritor que adote a perspectiva totalitária, que encontre desculpas para a perseguição e a falsificação da realidade, se destrói como escritor. Nenhuma diatribe contra o ‘individualismo’ e a ‘torre de marfim’, nenhum chavão religioso do tipo ‘a verdadeira individualidade só é alcançada através da identificação com a comunidade’, pode esconder o fato de que uma mente comprada é uma mente podre (…) em algum momento do futuro, se a mente humana se transformar em algo totalmente distinto do que é agora, talvez aprendamos a separar a criação literária da honestidade intelectual (…) A imaginação não se reproduz em cativeiro”.

Uma frase que todo escritor devia usar antes de juntar uma sílaba com a outra, ad eternum, ad infinitum, forever usá-la de epígrafe, de epitáfio, endereço, senha, mantra, impressão digital etc etc etc. A IMAGINAÇÃO NÃO SE REPRODUZ EM CATIVEIRO. A IMAGINAÇÃO NÃO SE REPRODUZ EM CATIVEIRO, A IMAGINAÇÃO NÃO SE REPRODUZ EM CATIVEIRO, CAZZO!!

Não trair a si mesmo é um dos pontos básicos para registrar algo que valha a pena ser lido, refletido e apreciado depois de cem anos. Com certeza, esse é o recado de Orwell. Infelizmente, Orwell errava pouco e entendia como nenhum outro de previsibilidades. Estava na cara que o gado acabaria se adaptando alegremente ao cativeiro. A imaginação, eu acrescentaria, não se reproduz em gaiolas de ouro nem em coletivos de periferia. São exatamente esses lugares que abominam o pensamento individual. Hoje, pensar por conta própria é quase um crime. Às vezes é crime mesmo.

Impressionante, esse Orwell: apontando o dedo para a omissão dos intelectuais de sua época em face do massacre que a extinta URSS promovia contra jornalistas e escritores, ele conseguiu se projetar no tempo e vislumbrou  os “leitores sensíveis” das editoras, os comitês de censura racistas de alguns jornais, o fascismo do Sleeping Giants, Orwell rasgou as bandeiras dos fanáticos e desmentiu o ódio dos revanchistas, como se não bastasse anteviu os  saraus esotéricos da nossa querida e fofa Vila Madalena. Hoje, ao identificar mais um oportunista bem-sucedido que substituiu o gênio por palavras de ordem e discursinho, lembro de Orwell. Lembro de Orwell a toda hora, todo instante: a imaginação não se reproduz em cativeiro. As palavras dele rebimbam como sinos na minha mente, e só me resta lamentar pela precisão de suas profecias: “(…) qualquer escritor que adote a perspectiva totalitária, que encontre desculpas para a perseguição e a falsificação da realidade, se destrói como escritor”.

 “Uma mente comprada é uma mente podre.” Há mais de oitenta anos, Orwell meteu os oportunistas e farsantes bem-intencionados no mesmo balaio, e previu que o cativeiro seria sinônimo de igualdade, e inclusão. Querem mais?

Tem mais! Muito mais! Não foi só isso, não. Prever o futuro, profetizar, sentir o cheiro da carniça, antever as merdas etc, qualquer Mãe Dinah* consegue. George Orwell foi muito além.

Ele “teve a sorte” de testemunhar, documentar e viver uma série de calamidades no seu tempo, e refletir sobre essas calamidades a partir do ponto de vista do homem, e não do fanático que somente tem o ódio e a vingança como norte em sua bússola. Sob esse aspecto, poderíamos dizer que é um irmão fraterno de Primo Levi. Foi a humanidade, e a experiência única e extraordinária vivida na própria carne que transformaram esses homens em profetas.  

Bem, vamos ao que interessa. Anotem aí: “A vingança é amarga”.

Orwell teve a oportunidade de verificar in-loco o famigerado e quase sempre nefasto “coletivo” materializar-se diabolicamente num só indivíduo. E escreveu um ensaio que, a meu ver, é muito mais do que um debruçar-se sobre determinado tema, trata-se de um documento precioso do nosso tempo, cujo título é “A vingança é amarga” — este ensaio faz parte do livro “Como Morrem os Pobres”.

Orwell acompanha um judeu recrutado pelo exército americano que tinha por missão interrogar prisioneiros de guerra. Conduzido até um hangar, depara-se com supostos oficiais da SS empilhados uns sobre os outros em condições sub-humanas. Entre eles, “um infeliz que tinha pés estranhos e horrivelmente deformados. Os dois eram bastante simétricos, mas haviam sido golpeados até assumir uma extraordinária forma globular que os tornava mais parecidos com cascos de cavalo do que com qualquer coisa humana”.

 “O verdadeiro porco!” — segundo o judeu que conduzia Orwell.

De repente, o interrogador “dá um terrível pontapé com sua pesada bota do exército no inchaço de um dos pés deformado do homem prostrado”. Era quase certo que aquele homem prostrado, o ex-oficial nazista, havia dirigido campos de concentração e comandado torturas e enforcamentos. Orwell contempla a miséria deplorável do infeliz, e constata que a versão contada pelo judeu-americano — de que se tratava mesmo de um grande filho da puta, um porco nazista — provavelmente era verdadeira, e chega à seguinte conclusão: “a figura monstruosa, contra a qual havíamos lutado por tantos anos, se resumia àquele deplorável infeliz, cuja necessidade óbvia não era de punição, mas de algum tipo de tratamento psicológico”.

Em seguida, reflete sobre a selvageria de ambos, do judeu que agora subjuga, e do alemão prisioneiro que é subjugado. Na verdade, é muito mais do que uma reflexão. Quase uma oração. Orwell consegue, diante de uma cena grotesca, dar um lustro no “Pai Nosso”: “Perguntei a mim mesmo se o judeu estava de fato tendo prazer com aquele poder recém-descoberto. Concluí que não estava se deleitando realmente com aquilo, mas apenas — como um homem num bordel, ou um menino fumando seu primeiro cigarro, ou um turista vagando por uma galeria de arte — dizendo a si mesmo que estava tendo prazer e se comportando como havia planejado se comportar nos dias que estava impotente. É absurdo culpar qualquer judeu alemão ou austríaco por dar o troco aos nazistas (…) aquela cena e muitas outras coisas que vi na Alemanha deixaram claro para mim que a ideia de vingança e punição é ilusão infantil. Para ser exato, não existe vingança. A vingança é um ato que se quer cometer quando se está impotente e porque se está impotente; assim que o sentimento de impotência desaparece, o desejo se evapora também”.

É como se ele dissesse: eliminamos o sacrifício e/ou a hipocrisia de amar quem nos odeia. Você, homem, não sabe o que está fazendo: apenas é um monstro circunstancial que não tem condição de perdoar nem de ser perdoado, portanto você é tão inocente e tão impotente quanto seu algoz. Embora, aqui do fundo do meu coraçãozinho sadomasoquista e cristão, eu teimosamente continue insistindo que sem culpa e sem o perdão não atravessaríamos uma rua, sem culpa e sem perdão não conseguiríamos sequer uma ereção decente, ah, sem culpa e sem perdão o homem não toleraria o semelhante e nem a própria sombra, mas isso é coisa minha, deixa pra lá.

O importante é continuar ouvindo a voz que, em 1940, já destoava dos totalitarismos de sua época, e que hoje — infelizmente — reverbera cada vez menos no coração de poucos.

* Mãe Dinah foi uma “vidente”, digo, uma picareta que fez fama no século passado. Ela não possuía certificado do INMETRO, nem ISO 9OOO, aliás ninguém, nem mesmo Chico Xavier, jamais possuiu atestado ou diploma de “vidente”. Portanto, a figura da “falsa vidente” que circulou na mídia ao longo desta semana é um pleonasmo. Todos aqueles que pedem dinheiro para fazer intermediação com Deus (ou com o diabo, como era o caso de Rosa Stanesco Nicolau, a “falsa vidente”) independentemente de seus métodos e credos, a meu ver, são falsos. Conheço muito bem Rosa Nicolau, ou “Mãe Valéria”, a criminosa que foi presa em flagrante na Operação Sol Poente. Ela não é apenas uma golpista ou “falsa vidente”. Na verdade, trata-se de uma “mãe de santo” conhecidíssima, solicitadíssima e estabelecida na zona sul há décadas. Sacerdotisa das trevas que mora na quadra da praia, em Ipanema, e que comanda um terreiro escabroso em Barra do Piraí. Investiguem esse lugar! Que é frequentado por políticos graúdos, pastores, bispos, artistas, jogadores de futebol, globais e toda sorte de socialites nacionais e internacionais. Como e onde é que vocês acham que Rosa conheceu a ultramilionária filha do galerista, senão nas altas rodas cariocas? Quem quiser mais detalhes leia a crônica que escrevi a respeito aqui mesmo no Bula, ou leia o romance Quanto Custa um Elefante? —  “Mãe Valéria” é nada mais nada menos que coprotagonista da história. Tenho quase certeza que Sabine Boghici — que é portadora notória de severos transtornos mentais — foi vítima de violentíssima pressão psicológica e manipulada por “mãe Valéria de Oxóssi” para cometer as barbaridades que cometeu. Talvez Sabine seja tão vítima de Rosa Stanesco & família (os vampiros de Ipanema) quanto a mãe dela. Vale aprofundar a investigação. Outra coisa, a única foto que circula na mídia estranhamente não corresponde à figura de Rosa Nicolau. Asseguro que não é a mesma pessoa. Coloco-me a disposição da justiça para eventuais esclarecimentos.