Todos castrados, menos eu e o Reinaldão que somos dois idiotas Renato Parada / Arquivo Nacional

Todos castrados, menos eu e o Reinaldão que somos dois idiotas

Faz um bom tempo, acho que mais de dez anos, que topei com um livro “psicografado” por Nelson Rodrigues. À época fiquei chocado não porque o autor — já no prefácio — renegava a própria obra, mas com o estilo que absolutamente não correspondia ao Nelson Rodrigues terreno. Como se a morte corrompesse a voz, as obsessões, o tesão pelas cunhadinhas e até a paixão pelo Fluminense.

O tempo passou e hoje, talvez, eu não ficasse tão chocado com o estilo Chico Xavier de Nelson Rodrigues mandar seu recado.

Descobri que estilo mata. É aquilo que poucas e raras pessoas (raríssimas, bom anotar, graças a Deus) carregam de pior; é o traço que separa o homem do rebanho, estilo é carne, veneno e corrupção para a alma, azar de quem tem.

Hoje, fico muito feliz em saber que a morte “estragou” Nelson Rodrigues, ele deve ter evoluído: pelo que eu saiba não publicou mais nenhum livro post mortem. Imagino que o autor de “Anjo Negro” deve ter literalmente passado desta para melhor, muito melhor.

Aqui faço um parêntese. Um parêntese especialmente endereçado a Lázaro Ramos. Você que é um homem rico, bem-sucedido, e uma voz influente dentro das artes e da sociedade brasileira. Tem que ser você! Produza urgentemente “Anjo Negro”, meu caro Lázaro — e incorpore Ismael como você incorporou Madame Satã. Trata-se do personagem menos ambíguo, mais cruel e canalha de Nelson Rodrigues.  Ismael vai ser o papel de sua vida, vai por mim, estamos falando de sua consagração.

Enfim, esse preâmbulo seguido do parêntese é para dizer que ainda estou vivo e que deixei passar todas as oportunidades de evoluir nesta vida (seja lá o que isso queira significar): vai fazer vinte e cinco anos que publiquei meu primeiro livro, e contínuo o mesmo animal de sempre. Só não tenho o mesmo gás.

Se eu não evoluí, o mundo menos ainda. Algumas coisas como a literatura, a heterossexualidade e os telefones públicos (também conhecidos como “orelhões) foram suprimidos pela tecnologia e perderam mais do que a relevância, perderam o sentido. E eu evidentemente também dancei.

No final do século passado e começo do 21, quando publiquei os primeiros livros, não existia aplauso fácil. Nossos demônios eram obrigados a conviver conosco: se era difícil para nós, imaginem para eles que não tinham nem um tik tok para dar uma desopilada de nosotros.

Era um inferno, mas ninguém pagava mico, tínhamos um caminhão de recalques mas um mínimo de dignidade. E se o cara não tivesse estofo, não aguentava. Ou enlouquecia, ou se matava. Ou arrumava um emprego de colunista no “Estadão”, escrevia a biografia de um banqueiro sob encomenda, enchia o rabo de dinheiro, entrava pra ABL e vivia feliz para sempre.

Naquela época, a etnia e a cor da pele, os orifícios por onde o escritor(a) trepava, seu endereço e condição social eram apêndices, nada tinham a ver com literatura, muito menos com estilo. Literatura era o contrário de cura e assistência social, prevaleciam os doentes e os filhos da puta. Ainda prevalecem nas minhas prateleiras, mas isso é um detalhe. Biografia também era um detalhe. Sempre foi assim. A biografia de qualquer escritor sempre foi irrelevante.

E comigo não ia ser diferente. Eu e minha “biografia” somos irrelevantes. Porque a realidade é irrelevante. Porque a ficção é irrelevante. Porque até Nelson Rodrigues depois de morto não é mais o mesmo. E porque a única coisa que conta é a soma e o resultado de todas essas irrelevâncias. O que conta (ou contava) é/era o grito da besta-fera humana. Algo que, hoje, virou um muxoxo. Porque só tem santo a jogar pra plateia. Tutto castrato.

Agora o que conta é o sofisma, a política partidária, o oportunismo, o business, o discursinho no lugar do talento, a hagiografia do coitadinho que não presta sequer para ser ficção porque não passa de uma mentira crassa e ululante.

Outro dia, pesquei no google uma entrevista do Reinaldão Moraes, e ele dizia mais ou menos que continuava a escrever porque era um idiota. É isso, resumidamente, é isso.

Se além da idiotia, o cara fosse um pouco esquizofrênico, mezzo psicopata e obsessivo, melhor. Se tivesse um bom ouvido, ritmo e umas cartas na manga, e algo a dizer, fechava. Hoje não.

Na verdade, qualquer uma dessas condições, no milênio passado, já seria mais do que suficiente para o candidato a idiota, digo, candidato a escritor, se dar muito bem. Eu, por exemplo, sendo apenas e tão somente um idiota funcional, escrevi 22 livros.

Notem que dá para se ter uma ideia do tamanho da idiotice do fulano(a) pela quantidade de livros publicados. Nesse quesito sou muito mais idiota que Machado de Assis e Reinaldão Moraes juntos. Só devo estar perdendo pro Chalita e pro Gonçalo Tavares.

Vou dizer um treco: se diante do cenário de miséria absoluta, tédio e entorpecimento em que vivemos, se diante da erosão da personalidade individual e da estigmatização do “eu” em detrimento de um coletivo histérico e fascista, se diante da inapetência para esboçar um latido ou qualquer reação análoga, se diante da calamidade existencial da qual somos o retrato mais fidedigno, se diante da merda em que estamos atolados até o pescoço (e às vésperas da eleição mais cagada do milênio) se diante dos extremismos que impendem qualquer reação que não seja puro ódio e ressentimento, se diante disso e, apesar de tudo, minha idiotice servir para tirar da pasmaceira uma alma que seja, bem, do fundo do meu coraçãozinho doente e apodrecido: se acontecer um milagre desses, serei o idiota mais realizado, e o mais feliz dos cretinos.