Prisões, açougues e democracia

Prisões, açougues e democracia

Há uns cento e vinte anos, o pai de Jorge Luis Borges dizia ao filho que haveria um tempo em que o mundo não precisaria mais de prisões, açougues, democracia, generais e governos.

Desconfio que ele estava certo. Mas preferiria que ele não tivesse incluído os açougues na profecia. Fazer o que né?

Diante do poder de mobilização das redes sociais, e do poder de censura e cancelamento das mesmas, isto é, diante da força e da volúpia redescobertas pelas massaszuckerberg & derivados, e diante dos avanços da neurociência e da tecnologia rumo às inteligências artificias, e ignorando a multidão de famintos e miseráveis que sempre foram ignorados, e considerando que o futuro não é fraterno nem tampouco saudosista, alguns ideais e valores — a começar pela fraternidade — bem como algumas figuras patéticas a que nos acostumamos dar uma relevância exagerada, soarão tão irrelevantes, desnecessárias e fora de contexto para as novas gerações como os penachos e medalhas do uniforme do coronel Gadaffi, lembram dele?

O mais bizarro é colocar o ex-ditador líbio na mesma vala-comum de Montesquieu. E jogar lá dentro, na mesma vala da irrelevância, Gandhi e Celso Pitta, e uma legião de homens e mulheres que azeitaram as engrenagens da civilização e da barbárie, todos incluídos no mesmo lodo da desnecessidade. Junto com a história.

Bem, vale sublinhar que, até agora, a história deu conta de fazer a reciclagem e a homenagem e/ou apagamento das devidas reputações, ela que separava o joio do trigo. A grande novidade é que, pela primeira vez, ela, a história, também vai fazer parte do saco de gatos, e será engolida pelo buraco negro da irrelevância. Nas próximas décadas, nosotros e muitas estruturas que serviram de argamassa para a construção daquilo que chamávamos “identidade”, e que dividiam os heróis de um lado e os facínoras de outro lado (o bem e o mal) não mais farão sentido.  

A impressão é que o mundo, hoje, sofre de uma síndrome de não-pertencimento, mas a coisa não é tão chique assim. Denominar dessa forma é quase dar uma transcendência para algo que não é coisa alguma (ainda). O mundo sofre mesmo de bursite tecnológica, vivemos na era das bolhas (ou cavernas) digitais. Voltando ao pai de JLB: o anacronismo é geral, não são apenas as medalhas e as honras aos méritos dos medíocres que perderam o sentido, os lugares e oráculos do século 20 não existem ou não tem mais necessidade de existir.

Tudo tão fora de propósito e de contexto como a Academia Brasileira de Letras, ou a volta do Dinho Ouro Preto às paradas de sucesso.

Todo esse preâmbulo só para reafirmar que o pai de Jorge Luis Borges incluiu a democracia em sua lista de desnecessidades. Sobre este item, eu concordo 100%. Vejam só a visão e a coragem desse homem! Meteu a sagrada, indelével e imorredoura democracia no mesmo balaio das prisões e dos açougues.

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Agora vamos abrir um parêntese, e imaginar um déspota que arromba o Estado, se alia a gângsters, narcotraficantes e/ou milicianos, tem a fúria de um Ali Babá, governa para os filhos e a famiglia, privilegia os amigos de plantão e os chantagistas de sempre, é pego reiteradamente com a boca na botija, além de desposta também é um mentiroso rematado, metido a moralista e a pai dos pobres e oprimidos, mau-caráter, cínico, falastrão e blasfemo, sórdido e falso feito as bandeiras e os interesses escusos que defende, xucro e vingativo, um oportunista que não hesita um milímetro em desfrutar dos mesmos vícios e usar dos mesmos métodos do antecessor na hora de corromper a alma de artistas, comprar legisladores, instrumentalizar o judiciário, contaminar a imparcialidade da imprensa etc etc, ou seja, independentemente do espectro político-ideológico que representa, e independentemente dos fanáticos que o cercam e o idolatram, ele/ela vai sim praticar e vai usar e abusar de todos os vícios que descrevi acima, e mais um caminhão de excessos, crimes e horrores que, agora, não me ocorrem, tudo em nome das prerrogativas que o cargo lhe confere, e em nome — outra vez — da famigerada democracia que o elegeu Presidente da República.

Não, não existe democracia assim. Não se pode falar em democracia nessas circunstâncias. E especialmente no presidencialismo não há que se conjecturar em outras circunstâncias, isso que é o pior. O que ocorre é um ciclo doente em torno de uma figura totalitária e absolutista que, apesar do suposto contraponto dos outros poderes, invariavelmente continuará destruindo o país, a economia, a vida e a alma da população, um ciclo que irá se repetir ad infinitum caso não haja uma ruptura.

No parlamentarismo — apesar da hipocrisia — teríamos uma democracia menos doente e quiçá mais administrável e representativa, livre de um maluco(a) que serve apenas para alucinar a população e colocá-la em estado bovino de estresse e transe paranoico, livre da desgraça concentrada, da desnecessidade profetizada pelo pai de JLB.

Acredito sinceramente que, por hora, é a única solução: o parlamentarismo é a boa hipocrisia; afinal uma hipocrisia pulverizada na figura de um primeiro-ministro que poderia cair a qualquer momento, e a reboque de centenas de parlamentares corresponsáveis pelos mandos e desmandos da nação — eles já não mandam e desmandam?

Só vejo vantagens. Seria um alívio. Um pouco de oxigênio antes que seja tarde demais.

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Hora de fechar o parêntese, e voltar ao mundo dos adultos.

Tô apaixonado pela Josi. Não, não era da Josi e do sorriso mais lindo do Flamengo que eu falava. Eu dizia que o start foi acionado.  Era isso, eu dizia que foi mais ou menos bom enquanto o iluminismo durou, e durou bastante, mas acabou, c’est fini.

Acredito que o genitor de JLB considerava que as massas nunca quiseram ou aspiraram por democracia. Seria o equivalente, segundo a profecia dele, e a qual subscrevo, a ensejar prisões e calabouços. A partir do momento em que as pessoas tivessem mais autonomia (leia-se acesso à tecnologia), elas claramente iriam optar por dispensar e rejeitar as tiranias impostas pelo Estado, e exerceriam afinal a liberdade e a tirania delas próprias.

Creio que não é preciso dizer que liberdade é algo totalmente diferente de ordem, progresso e conversa mole para boi dormir — liberdade é algo explosivo e imprevisível. Um sentimento auto-suicida, volúvel e caprichoso, que ora pode se associar à uma democracia de fachada, ora à sangue derramado e guilhotina… e inevitavelmente à tirania; resta saber quem e como serão os novos tiranos, e de que forma exercerão seus podres poderes — os Sleeping Giants nos dão uma pista.

Liberdade, hoje, é algo ou uma força histórica que o senhor Zuckerberg e todos os outros barões dos algoritmos, apesar das tentativas de manipulação, não fazem a mínima ideia do que seja e nem para onde vai. Enganam-se redondamente os que acreditam que a coisa pode se trasladar para o metaverso — doce ilusão de nerd que nasceu com vocação de avestruz.

Haverá um tempo — acrescentando mais dois itens na profecia do pai de Borges — em que o mundo não precisará mais de história nem de liberdade.

Da minha parte, eu só queria poder acreditar que teria paz para ir à churrascaria daqui a dez ou quinze anos, mas não sei se será possível.