Existe amor em Seropédica

Existe amor em Seropédica

Se acredito em Deus e nos seus subprodutos, o diabo incluído, e nas ilusões todas, nos sofismas, nas parábolas, nas elipses e na sabedoria de Salomão, se acredito que a rainha de Sabá atravessou a África durante meses, que se deslocou da Etiópia até Jerusalém somente para conhecer o autor de Eclesiastes e dar para ele, ou seja, se acredito num tesão de três mil anos, as palavras de Salomão continuam vivas, e desafiam a mais contundente e irrefutável sentença do próprio Salomão, filho de Davi.

Portanto, é do pó que trago essa crônica. E ao pó a dedico.

Se acredito no Pai, no Filho e no Espírito Santo e se acredito no tesão e no amor das mulheres, apesar da crueldade delas, e se acredito nos beijos de mau-hálito depois de uma noite de sexo quase familiar e, se no dia seguinte, esse beijo de cigarro mais o bafo de onça se repete na hora de embarcar a amada no Uber rumo às profundezas de Seropédica, e se a corrida do Uber vai estourar meu cartão de crédito, e mesmo assim envio um whatsapp pra ela lembrando das sacanagens que nem bem esfriaram em  nossos corpos e que já viraram saudades, enfim, se acredito no livro de Eclesiastes e em cartão de crédito rotativo, posso perfeitamente acreditar no encontro do tesão com o amor, e que esse amor tesudo pode ultrapassar Seropédica, subir a serra das Araras e quiçá atravessar o Vale do Paraíba e chegar em São Paulo.

Ora, se acredito que existe amor em São Paulo, acredito em qualquer coisa (menos na canastrice do Criolo); enfim, se acredito em qualquer coisa, por que não acreditar que, da próxima vez, a mulher amada vai me cobrar somente o programa? Nem o rei Salomão, o homem mais rico e mais sábio que já passou pela face da terra, aguentaria pagar Uber pra Seropédica — ida e volta! Valha-me, rei Salomão! 

Pois bem, se acredito em milagres é porque, apesar das mentiras da noite passada, as mãos que escorregaram na hora do adeus e o hálito de agonia existiam/existem para valer.

Sim! Existem ao feitio das coisas mais improváveis desse e dos outros mundos.

Ah, Alah! Alah, meu bom Alah!

Eu acredito em 800 virgens e em 8000 mulheres defloradas e muito bem comidas e felizes no paraíso, e quero não acreditar nas carnificinas de Bucha e nas carnificinas promovidas ao redor do mundo pela insensatez e selvageria dos homens, não quero acreditar em youtubers, tik-tokers e miasmas afins e me recuso a acreditar que tem “influencer” ficando milionário às custas de maledicência, especulação e likes  sobre crianças que abortam crianças, ah, Alah, Alah, meu bom Alah, prefiro não acreditar nas torturas, mutilações e estupros coletivos de Makariv porque meu cardiologista disse que se eu der muito crédito pra realidade — incluam o citrato de sildenafila — até a mais incauta virgem do paraíso vai achar que eu não presto nem pra bala perdida, ora, se empenho promessas a Santa Edwiges, e se ocupo meu tempo, me distraio e me divirto com essas ilusões ainda em vida, não parece razoável que, depois de morto,  — eu, o incauto  — guarde ao menos uma expectativa de permanecer mergulhado na ilusão?

Em outras palavras: ainda que Seropédica seja mais longe que a Etiópia, ainda que somente meu grito desesperado reverbere no deserto, ou ainda que não exista nada do lado de lá além da ilusão de uma crença inútil em coisa nenhuma, ainda assim o bônus para quem se iludiu com a vida, e acreditou no amor das mulheres e no circo do Carequinha, ora, ao menos esse bônus — pela fé que tenho em Jesus Cristo! — vai estar garantido.

Daí que não tenho outra alternativa senão assinar embaixo do imponderável, e acreditar que existe amor em Seropédica. Acredito em milagres! Acredito no tesão de três mil anos da Rainha de Sabá, e no pó que atravessa o tempo desde o princípio, antes mesmo do verbo!

— Confere aí, almoxarifado?

— Confere.

Urge, portanto, a única e fundamental pergunta feita por Stanley Elkin em “Morte ao Vivo”: “Existe vida antes da morte?”

Caso a resposta seja positiva só resta provar que não estamos mortos. Alguém tem alguma prova?