Mesa 5: sinopse de uma peça de teatro inédita

Mesa 5: sinopse de uma peça de teatro inédita

Ao descobrir que o bar que frequenta desde a adolescência vai fechar as portas para se tornar uma Temakeria, dr. José Carlos Moreschinni, implacável baluarte do Ministério Público Federal, acorrenta-se à sua mesa preferida, a número 5, na tentativa de impedir tal sacrilégio. No entanto, refém da armadilha que ele mesmo armou, vê-se obrigado a confrontar suas obsessões e segredos vergonhosos e inconfessáveis, encarnados em personagens que se sucedem e se sobrepõem, num diabólico tribunal noite adentro.

A saber: — Doutor José Carlos Moreschini, ou Caco, como ele prefere ser chamado. 60 anos. Bem detonado para a idade que tem, um caco mesmo. Exagerado, patético. Teve em evidência midiática por um bom tempo, e sempre gostou, desfrutou e manipulou dos holofotes até que foi abandonado pela ribalta, pelos amigos, e por dra. Simone, a única mulher (quiçá o único ser vivente) que literalmente o subjugou. Rematado playboy e filhinho de papai, estudou no Dante, e se formou no largo de São Francisco. Há quase trinta anos no Ministério Público. Já ensaiou mandar muito vagabundo de colarinho branco para o xilindró, daí sua pretérita notoriedade. Seus pares o conhecem como “implacável”. Não conseguem arrumar outro adjetivo para ele. Além de implacável, corno. Irremediavelmente corno.  

—  Messias, dono do bar. Amigo de dr. Zé Carlos há trezentos anos, e tentativa fracassada de consciência moral do jurista. E leitmotiv da peça, pois a ideia de Messias é transformar o bar falido numa temakeria.  Durante um ano ausentou-se do estabelecimento e “se meteu na USP para fazer filosofia”, porém abandonou o curso. Doutor Zé Carlos nunca o perdoou pela ousadia de tentar “trocar o balcão pelo comunismo”. Messias alimenta um tesão decano e enrustido por dra. Simone. Daí que dr. Caco, sádico de carteirinha e pentelho por vocação, sempre o constrange por causa disso e dos “vícios” adquiridos e nunca curados no curso da USP. A paciência de Messias é algo sobrenatural — (pensei no Batata para fazer esse personagem).

— Dra. Simone Constantino, mãe de Thiaguinho e causa da ressaca eterna do dr. Moreschini. Simone e Caco se conheceram no ginásio, ambos ainda viviam a adolescência de seus respectivos sadismos. Típica patricinha do colégio Dante Alighieri. Antes mesmo de pensar em ser advogada, já tinha um escritório montado para ela na alameda Gabriel Monteiro da Silva. O pai da doutora foi advogado, ministro do STJ e amigo íntimo de Juscelino Kubitschek. O avô industrial e filantropo remido do instituto Pestalozzi, o bisavô barão do café na Alta Mogiana. Sócios do extinto banco Bandeirantes, dinheiro que não acaba nunca. Enfim, além de advogada criminalista, uma super perua mas, sobretudo, mãe de Thiaguinho Constantino (luciferzinho).

— Chico, o garçom cearense que serve dr. Moreschini desde sempre, e profundo conhecedor da superficialidade da alma humana. No final revela-se o grande artífice e responsável pelo desmanche dos castelos de areia do dr. Moreschini.

— Thiaguinho, ex-enteado do dr. Moreschini, filhote de dra. Simone, e agora influencer, autor de best-sellers de autoajuda e youtuber fashionista de sucesso, é um transtorno na vida do dr. Caco (guarda um segredo que pode aniquilar de vez a reputação do jurista); Thiaguinho também atende por Malu Moreschini, assíduo frequentadora de podcasts, habitué do programa da Ana Maria e dos vespertinos da Jovem Pan, monarquista militante. Uma “bichinha de direita” segundo avaliação do ex-padrasto. Os mais íntimos o conhecem como “luciferzinho”. Fazendo jus ao epíteto consegue ser mais sádica e escrota que dr. Moreschini e dra. Simone juntos.

—  Casalzinho samba-raiz-universitário; pitoresco e meio que fora dos padrões, um garoto e uma garota brancos e heterossexuais na faixa dos vinte e poucos anos. Ele de boina à Che, camisa xadrez aberta, por baixo uma camiseta estampada com a cara do Cartola. Ela de saia rodada, camiseta sem sutiã (ostenta orgulhosamente, além do belo par de tetas, as axilas peludas), à tiracolo carrega uma bolsa artesanal de feirinha hippie. Os dois usam sandálias de couro idênticas, e encontram-se visivelmente deslumbrados, mais ele do que ela.

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Nesse embate, os últimos cinquenta anos da vida política, cultural e boêmia brasileiras emergem às vezes pelo lado sórdido, às vezes cômico, desde o clube da esquina, passando pelo desbunde rock and roll pós-ditadura dos anos 80, até chegarmos nos dias atuais onde sordidez e comicidade — turbinadas pela ignorância e o ódio — parecem ter atingido um ápice difícil de ser superado.

Em “Mesa”, eu e Nilo Oliveira (coautor) ampliamos e aprofundamos alguns temas já esboçados em “Paisagem em Campos do Jordão”, nossa primeira parceria teatral. O personagem central de ambas as peças é o homem comum de classe média, detentor da tripla marca de Caim (hetero-branco-alckmin-PSDB eterno em pele de cordeiro): refém de uma situação limite e metido num embate direto e sem meias palavras que ameaça exterminar suas já tão destroçadas convicções, ele tenta resistir. A linguagem propositadamente crua — e obscena na raiz etimológica do termo — encontra-se vivíssima em certos ambientes resilientes, e grupos de whatsapp onde a luz do politicamente correto jamais vai incidir.

Acostumado a tirar prazer ao driblar o interdito, e ter a culpa como principal combustível deste prazer, dr. Moreschini se acorrenta violentamente ao passado, e agoniza.

Nosso anti-herói (mais meu herói do que do que anti-herói do Nilo, creio) escancara suas taras e rancores num mundo que, ao invés de destrui-lo ou redimi-lo, dá de ombros e diz “e daí?”. Não mais a punição ou a absolvição, mas a indiferença — o que acaba sendo um fator de exasperação e gerador de uma tensão dramatúrgica quase insuportável.

O texto traz para o palco a catarse desse macho-alfa que até há pouco tempo refugiava-se na própria insignificância rolando dadinhos e jogando bilhar em mesas de bares e contendas “etílico-esportivas”, sempre entre iguais, até que o mundo virtual começou a somar seus rosnados.

Desde Nelson Rodrigues, ele — esse espécime da fauna urbana brasileira que os segundos cadernos e a arte engajada há muito declararam extinto — não subia ao palco. O que seria — vá lá — até uma justiça histórica, se a invisibilidade não aumentasse seu rancor, e se esse rancor não encontrasse eco em milhões de recalques iguais. A arte, afinal rica de sons e fúrias, talvez mais violenta que a própria vida (como se ainda fosse possível) transcende a realidade e explode no palco.

Porém não haverá explosão alguma se “Mesa 5” não sair do papel. Precisamos de recursos, dinheiro, e não é pouco porque teatro é caro, para montá-la. Haja vista que nenhum edital, lei ou fomento aprovaria um “projeto” … como é que eu posso dizer? Um projeto “amardiçoado” como esse. Nós não oferecemos qualquer contrapartida social, inclusão e/ou interação com o público. Também não pretendemos suprir a carência moral ou sentimental de ninguém, teatro — o que fazemos — não é lugar para afagar a ideologia de gregos ou troianos, muito menos lugar de terapia grupal.  Queremos deixar bem claro que nossa peça não tem a pretensão de levantar o astral, melhorar e/ou salvar a vida de nenhum filho do putin, acreditamos que teatro não é consultório, nem centro espírita, e muito menos serviço de acolhimento e assistência social. Ou seja, no meio de tanta merda, covardia e oportunismo que gracejam em nossas artes e, principalmente, em razão da pressão por cancelamento que sofremos daqueles que, hoje, servem a autocensura (os mesmos que, infelizmente, trocaram a subversão pelas cartilhas de boa conduta), enfim,  diante de tamanha desolação, submissão, medo e covardia, acreditamos que seria um crime não reagir, e deixar de montar “Mesa 5”. Daí que resolvemos publicar a sinopse da peça. Vamos considerar o prazo de 60 dias para atingir a quantia de 100 mil reais. Caso não consigamos atingir essa meta, nos comprometemos a devolver o valor dos depósitos, centavo a centavo, àqueles que tiveram o bom-senso de colocar a mão no bolso pelo teatro livre do patrulhamento e livre da bunda-molice que campeia no meio, e nas artes em geral. Caso os depósitos extrapolem os 100 mil, os autores se comprometem a gastar tudo em festas e churrascos, estão todos convidados.

Os nomes/ marcas e os respectivos valores doados serão divulgados no programa da peça, ou seguirão em anonimato se for da vontade dos doadores. Ah, para evitar confusão: a exposição do nome do doador no programa da peça — claro né? — será proporcional ao valor doado. Segue a chave do PIX: [email protected]