Para Elza Soares, nunca foi tarde para se reinventar Fotografia: A.PAES /Shutterstock

Para Elza Soares, nunca foi tarde para se reinventar

Morreu aos 91 anos a cantora Elza Soares. Ela foi um fenômeno na juventude e se casou com o supercraque de futebol Garrincha, sendo uma das primeiras celebridades ao estilo contemporâneo. Se fosse hoje, seria uma personagem recorrente das redes sociais. Na velhice, surpreendeu meio mundo com uma guinada na carreira. Juntou-se a um bando de rapazes que trouxeram a parafernália eletrônico para aquela voz moldada em sambas e “bossa negra” (como batizou um dos primeiros discos).

Com 85 anos, apostou em músicos paulistas carregados de música eletrônica e velhos sambas. Uma ponte entre o Rio de Janeiro tradicional e a modernidade fria de São Paulo. O artista plástico, escritor e letrista Nuno Ramos diz que o samba tem um caráter de obra coletiva. Difícil saber quem é o compositor, o intérprete, o arranjador. Existe pouco espaço para indivíduos. Exceções apareceram com Cartola e Nelson Cavaquinho, que passaram a vida anônimos e vieram à tona nos anos 1970.

A coletividade ressurgiu no projeto de dois discos de Elza Soares — “A Mulher do Fim do Mundo” (2015) e “Deus é Mulher” (2018). Em “Planeta Fome” (2019), ela fez parceria com a explosiva banda BaianaSystem. Gravou uma versão bem contemporânea da canção “Comportamento geral”, de Gonzaguinha, estabelecendo uma ponte entre as diversas crises brasileiras. Onde começa a autoria, a criação, a voz, os sons instrumentais dessas três obras? Quem inventou tais músicas?

Foi muita gente envolvida desde o primeiro disco há seis anos. A parte mais visível eram os “rapazes” Romulo Froes, Kiko Dinucci e Guilherme Kastrup. Já nasceram e cresceram na era do digital, do compartilhamento, de inúmeros discos e músicas colocados para download livre na internet. Se estivesse vivo, Nelson Cavaquinho teria sido uma das possíveis vozes de um projeto. Em 2016, Froes gravou um disco fantástico só com músicas do autor do clássico “Juízo final”.

A forma é o samba que encontra tensamente a eletrônica, o funk, a vanguarda paulista (Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Patife Band). Calhou de ser Elza Soares em dois discos memoráveis. Tem hora que Elza solta seus conhecidos gritos, em outros momentos poderia ser uma funkeira do “fim do mundo”. Arranjos trazem barulhos, batidas eletrônicas e guitarras selvagens de Dinucci — que junta tudo citado acima à paixão por Velvet Underground e Lou Reed.

“Deus é Mulher” deu continuidade ao projeto, colocando em primeiro plano a questão do empoderamento feminino, a começar pelo título do disco. Elza vai pontuando: sua voz vai dizer o que se cala e solta que “o meu país é o meu lugar de fala”. A música “Credo” carrega a energia que não se vê dando sopa por aí. Poderia ser a voz de Anitta ou Valeska Popozuda. Mas é Elza Soares, com quase 90 anos de idade, cercada de batidas funk e uma guitarra que escorrega para o punk.

A coletividade de Romulo Froes inclui frequentemente as parcerias com o multi e genial Nuno Ramos e Paulo Climachauska, outro artista visual. A todo momento, esbarramos com a citação de um deles no trabalho do outro. A inteligência não é “dom” de uma pessoa só, mas a produção de grupos. E Elza foi a voz que mostrou o potencial dessa turma tão mais jovem do que ela, num encontro inesperado de gerações e numa parceria que marcou a música brasileira dos últimos anos.