Filme ganhador do Oscar e considerado quase perfeito está no catálogo da Netflix Divulgação / Universal Pictures

Filme ganhador do Oscar e considerado quase perfeito está no catálogo da Netflix

O mundo pode caber dentro de um quarto. E isso não é nada bom. Existem histórias tão inverossímeis que só poderiam mesmo ter saído da pena da própria vida. Dada a precisão do roteiro, o diretor Lenny Abrahamson parece ter pegado um filme prontinho, mas era justamente aí que residia o problema. Baseado em “Quarto”, romance de Emma Donoghue, publicado em 2010, a força do enredo de “O Quarto de Jack”, lançado em 2016, está na palavra. Cinema é palavra também, claro, mas é muito mais imagem, por óbvio.

Abrahamson venceu o desafio ao optar pelo minimalismo da cena e voltar as baterias ao desempenho da excelente Brie Larson e de Jacob Tremblay, formidável, mãe e filho enclausurados depois que Joy Newsome, a personagem de Larson, é sequestrada aos 17 anos por um maníaco que se aproxima dela pedindo-lhe que socorresse o seu cachorro. Dois anos e muitos abusos depois, Joy engravida e dá à luz o Jack do título, nascido no quarto em que são mantidos em cativeiro pelo criminoso, que se faz conhecer apenas pelo apelido, Velho Nick. Tudo o que têm são um ao outro e é comovente observar a estreiteza dos laços que os unem. A única ideia que Jack faz do mundo se constitui a partir das imagens de uma televisão velha. Nada para ele é real, apenas a mãe, já que nem a si mesmo consegue ver, por não existir sequer um espelho no cubículo.

É interessante tomar-se a análise a partir desse argumento. Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. A vontade de ser boa, de manifestar sua humanidade ao se solidarizar com a suposta dor do homem que viria a se tornar seu algoz — o sofisma do mal-estar do cachorro — a empurrara para um limbo ao qual parece condenada para sempre. Se tivesse dado uma desculpa qualquer, se simplesmente continuasse em seu trajeto ou até mesmo se se voltasse para seu interlocutor com algum nível de animosidade, a vida seguiria como o usual, pelo menos até ali. Como a filosofia das massas também dispõe de seu grau de ciência, Joy é pega, mas a ninguém é dada uma cruz tão pesada que tenha de ficar pelo caminho. À abjeção inominável do sequestro se desdobra em episódios reiterados de estupro, até que, finalmente, ela engravida de Jack, seu salvador.

Schopenhauer igualmente nos fornece material quanto a compreender o que se torna a vida para Joy e seu pequeno escudeiro na desdita particular que os colhe — com a agravante de que ao menino não restara nenhuma alternativa. O mundo que Joy (para ele Ma, de mãe) inventa para os dois, a fim de que tenham cabedal psíquico o bastante para suportar tamanha angústia, alude a uma dimensão paralela, em que habitam somente eles. Com todo o tempo do mundo, Joy se dedica a proporcionar ao filho o conhecimento que pudera adquirir até pouco antes de atingir a maioridade, ou seja, quase nada, mas é emocionante verificar a devoção que nutre pelo garoto. Jack assimila a realidade confusa de se estar num espaço que ele já percebe como incômodo, claustrofóbico, enfermiço, funesto, e ao mesmo tempo conhecer o mundo como ele é pela tevê. Quiçá esse tenha sido o mal do facínora que os encarcerara; à medida que cresce e toma pé da realidade, conforme seu sistema cognitivo ainda por se consolidar lhe faculta, Jack sabe que algo ali vai mal. Quando completa cinco anos, sua mãe lhe revela a verdade. O garoto, por óbvio, escandalizado, não processa nada do que lhe é dito, desencadeando-se o processo de negação que já se esperava. Por pior que lhe pareça — e, de novo, ele sabe que existe alguma coisa de patológico em sua vida —, não tem a mínima vontade de abdicar de sua bolha de aconchego e falsas certezas. Provavelmente, o único perigo concreto fosse o Velho Nick, o invasor que rotineiramente conspurca seu paraíso sui generis.

Em “Mãe!” (2017), o diretor Darren Aronofsky se vale da noção idílica de um éden decaído para também falar do amor materno rotineiramente e do que uma mãe é capaz para manter a salvo o fruto de seu ventre. Aronofsky se esmera em compilar um calhamaço de ideias sobre a criação da humanidade, tomando por base o cotidiano de um casal o seu tanto apagado, opaco, levando uma vidinha frugal e sem uma razão maior. A personagem principal, Veronica, é casada com um homem mais de 20 anos mais velho, todavia incapaz de lhe conferir alguma segurança, tampouco o sustento. Uma noite, bate à porta da imensa casa em que moram os dois, sozinhos, um homem, aparentemente sem lugar para dormir. O marido de Veronica, como Joy, o acolhe, atitude que se revela a maior insânia que poderia cometer. Esse homem trazia consigo o pecado, o demoníaco, o mal, personificado em “O Quarto de Jack” na figura de Nick. O ultraje dos estupros, como dissemos antes, é justamente o que dá a Joy alguma chance de sobrevivência, uma vez que fica grávida e aquele seu arremedo de vida, que virara a vida de fato, adquire um propósito. Tal como Maria, Joy daria à luz o seu messias, o salvador da sua humanidade.  

Convencido da vilania de Nick e convicto de que eles têm de dar um jeito de se libertar, Jack ouve a mãe e os dois levam a cabo um plano a fim de fugir. Primeiro o menino finge que sofre de uma febre muito alta, súbita, e que se não tratada por um médico, não vai resistir. Nick prefere só administrar a Jack alguns antibióticos e antitérmicos, e eles ficam na mesma. No dia seguinte, Joy apela, e tem início uma das sequências mais perturbadoras do filme e decerto do cinema contemporâneo. Joy parte para cima de Nick, dizendo que o filho, quase sufocando enrolado num tapete, acabara morrendo. O sequestrador ainda tenta argumentar, quer dar uma última olhada no que seria o cadáver do menino, mas Joy implora por alguma dignidade da parte do carrasco, lhe pedindo apenas que leve o corpo. Nick faz o que Joy lhe pede, bota o tapete na caçamba da caminhonete, e Jack, previamente instruído pela mãe, salta quando o carro para no sinal vermelho — e o menino é socorrido por um homem que, ironicamente, levava o cachorro para passear. Não demora e a polícia descobre o paradeiro de Joy, prende o Velho Nick e as coisas deveriam retomar seu curso. Deveriam.

A partir do segundo ato, quem reluz mesmo é a intérprete de Joy. É impressionante a compreensão que Brie Larson tem do papel, dando-lhe a profundidade necessária. A readaptação à antiga vida se revela muito mais difícil do que ela pensava e lhe demanda uma boa dose de empenho quanto a exorcizar alguns fantasmas mais encruados em sua alma. Fora do cativeiro, Joy passa a acreditar que se tornara um estorvo para os parentes, que não reconhece e que, em alguma medida, rejeitam-na também, em especial o pai. Robert Newsome — personagem do veterano William H. Macy, famoso por seu papel em “Fargo” (1996), dos irmãos Coen —, repele fisicamente o garoto, como se Jack representasse o que havia de pior entre eles: a negligência, a ausência, o abuso, o crime. É justamente o menino que, mais uma vez, salva a pele da mãe, ao se sentir a cada dia mais confortável no novo ambiente, esse, sim, um lar, ao passo que sua família lhe inspira essa sensação de acolhimento. 

A entrevista que Joy concede a um programa de grande audiência, sugestão do advogado da família a fim de promover a catarse final do trauma — à custa de um gordo cachê —, se revela um tiro que sai pela culatra. A âncora pesa a mão nas perguntas, mas o que lhe cala fundo é a hipótese de que ela teria agido melhor se tivesse pedido a Nick para que Jack fosse libertado. Joy não digere bem o episódio e tenta o suicídio, é amparada, claro, por Jack, mas tem de passar alguns dias hospitalizada. Nesse ínterim, o menino trava contato mais próximo com a avó e o namorado dela, que tem um cachorro — uma espécie de fetiche, para Jack, Donoghue e Abrahamson — ao qual se afeiçoa logo. Num gesto de maturidade incomum para alguém tão pequeno, Jack decide cortar o cabelo e manda as longas madeixas para Joy. Parece que era só isso que lhe faltava para, finalmente, se restabelecer de todo. Aos poucos e podendo contar com o carinho de Jack, da mãe e do marido dela, a protagonista vai dando a volta por cima; na sequência final, o diretor mostra os dois protagonistas visitando pela última vez o quarto em que tiveram desperdiçada boa parte de suas vidas, e estarrece pensar que aquele fora para Jack o único mundo que conhecera até conseguir escapar do desvario do criminoso que os enjaulou e agrediu com tamanha violência. Imaginar que tudo aquilo possa ter acontecido de fato é asqueroso. O livro de Donoghue se fundou no caso de repercussão internacional de uma adolescente que enfrentara o mesmo calvário que a personagem de Larson, com a agravante do Velho Nick da vida real ser Josef  Fritzl, responsável por aprisionar a filha durante 24 anos. Quando resgatada, a garota era mulher feita e havia engravidado do pai reiteradas vezes. Fritzl se matou na prisão.

Ao passo que Jack se despede das coisas que fizeram parte de sua vida de maneira visceral, muito mais do que na vida de qualquer outra pessoa, a doçura de Jacob Tremblay (que conquista o público sem o menor esforço) ressuscita em nós o preceito dos contos de fada e nos faz acreditar que, depois de todo o horror, mesmo aos trancos e barrancos, tenham conquistado outros mundos e sido felizes para sempre.