O filme mais perturbador do catálogo da Netflix

O filme mais perturbador do catálogo da Netflix

A humanidade é tão pouco coesa, o homem é tão inconstante, o mundo é tão caótico, que, até este momento, há mais de 34 mil igrejas sobre a face da Terra. Ainda que não se possa dizer que cada qual tenha sua própria interpretação para as Escrituras, há aquelas, por óbvio, que tomam a Bíblia de um modo bastante peculiar, muitas vezes distorcendo mesmo o sentido do que vai ali. Darren Aronofsky chegou para expulsar os vendilhões do templo.

Aronofsky decerto é um dos diretores mais sofisticados da história do cinema, adjetivo que se sustenta ao se analisarem trabalhos como “Pi” (1998), “Fonte da Vida” (2006), “Réquiem para um Sonho” (2000) e este “Mãe!”. Em “Mãe!”, o diretor se esmera em compilar um calhamaço de ideias sobre a criação da humanidade, tomando por base o cotidiano de um casal o seu tanto apagado, opaco, levando uma vidinha frugal e sem uma razão maior. O componente religioso foi se infiltrando sem maiores traumas na obra do diretor, ainda que ao serem tão numerosos os filmes que abordam a fé e, particularmente, o cristianismo, se possa afirmar, sem margem para contestações, que o assunto tenha se tornado uma espécie de obsessão, cujo objetivo não pode ser desprezado.

A alma de cada homem, em maior ou menor proporção, é dotada de demônios, silenciosos ou estridentes, pacificados ou sempre dispostos a tentar uma próxima cartada. “Mãe!” poderia ser encarado como o episodio final da trilogia sobre Deus e Seus desígnios, iniciada com “A Fonte da Vida”, que se desdobrou em “Noé” (2014). No caso de “Mãe!”, se está diante de uma alegoria muito bem construída acerca da Palavra, compreendida por Antigo e o Novo Testamento, concentrando-se no primeiro e mais especialmente no que respeita ao livro do “Gênesis”, que narra a criação da vida e tece hipóteses sobre como e por que estamos da forma que estamos. Veronica, a personagem de Jennifer Lawrence, a Mãe do título, poderia ser tanto entendida como a Virgem Maria, que gera o Deus sob a forma de um homem, comum, vulnerável e mortal, como a natureza, o mundo selvagem. Javier Bardem, ninguém menos que o Todo-poderoso, vive com a Mãe numa casa grande e sucateada, o planeta, situada num lugar distante e cuja extensão integral não se pode conhecer, ou seja, o universo.

Deus é encarnado por um poeta medíocre, que tenta a todo custo conseguir inspiração para escrever e a empreitada nunca toma corpo. Logo, cabe a Veronica, à Mãe, arregaçar as mangas e botar a mão na massa, a fim de impor alguma ordem ao pandemônio que se instalara naquele paraíso há bastante tempo, quiçá milhares de anos. A crítica sociológica no filme começa justamente aí: é a mulher quem, de uma forma ou de outra, acaba tendo de segurar as pontas. Apesar de pelo menos vinte anos mais nova que o marido, é  Veronica a responsável por prover as necessidades materiais e afetivas do casal. A Mãe está sempre sozinha, pelos cantos, cabisbaixa, muda. Uma musa nada inspiradora, portanto.

As alusões de fundo religioso seguem com a apresentação do escritório do marido, onde trabalha — ou tenta trabalhar —, que igualmente lhe serve de refúgio, em que guarda um cristal que, ao que indicam as circunstâncias, vale uma fortuna. O cristal, a fonte da infinita sabedoria do Altíssimo, ou seja, a maçã, nunca poderá ser tocado, e o escritório, o Éden, só se deixa penetrar por quem Ele escolhe. A rotina da casa segue sem maiores sobressaltos ou reviravoltas, até que um homem aparentemente sem um lugar onde passar a noite, bate à porta deles. O poeta, famoso por seus versos humanistas, o acolhe. Com a chegada do intruso, todo o cenário de uma pretensa harmonia rui e a casa adquire um aspecto fantasmagórico, sendo tomada por tipos os mais esdrúxulos, como se uma legião de demônios se apossasse daquele paraíso. O andarilho é Adão, o primeiro homem, a humanidade ela mesma, perdida, maltrapilha, suja, esfaimada, eivada dos piores vícios. Deus se compadece dele, até meio abobalhado pela natureza fantástica de suas histórias, de que o espectador — e nem a Mãe — tomam conhecimento. Aronofsky não se intimida com julgamentos de nenhuma ordem ao dar azo a um Deus ególatra, paspalhão, orgulhoso, insensível, imperfeito. E para ele, como se vai atestar, o Nome é ainda pior.

Adão passa a noite e vai ficando, abusando da hospitalidade divina. Invade o escritório, mas não é admoestado. Ao deitar os olhos sobre o cristal, cai fascinado, tenta tocá-lo, e nesse momento Deus se manifesta. Adão se submete, porque aquela figura paternal, que lhe oferecera a própria morada, lhe inspira temor. A Mãe, sempre diligente e solícita, atende Adão em suas mais básicas necessidades, limpando sua imundície, arrumando sua bagunça, uma analogia ao amparo de Maria no curto decorrer da trajetória de Jesus no plano da matéria, de cujos poderes jamais duvidou, que toda a vida assistiu, cujo cadáver recolheu do madeiro. É ainda uma alegoria à sempiterna capacidade da natureza em se recompor, se refazer, malgrado o homem não a deixe em paz. Tolos, pensamos que a natureza precisa de nós, quando é justo o inverso. Quando sobrevier o apocalipse, tudo volta ao ponto inicial, o mundo começa bem antes do gênero humano — e pode continuar sem ele.

Tudo passa a ficar um pouco menos confuso a partir do segundo ato, desencadeado com a gravidez da protagonista: a Mãe está grávida e vai dar à luz o filho do Homem, o único capaz de conferir à Casa alguma possibilidade de paz. É quando o Antigo Testamento cede lugar ao Novo, malgrado Aronofsky não esteja nada disposto a condescendências. Para ele, além dos inúmeros defeitos já ostentados por Deus, o Senhor de todas as coisas é cruel, por permitir que Seu filho partilhe da miserável condição humana e se submeta a todo jaez de humilhação sob o pretexto irracional de salvar quem não merece — nem deseja — ser salvo, haja vista a teimosia do hóspede insubordinado, que quebra o cristal e quebra junto todo o encanto da invenção divina. Resta ao homem trabalhar a fim de garantir o sustento para si e sua companheira, a mulher, ardilosa, mesquinha, torpe, o pecado original eternizado. À Mãe, só restou conservar o fruto de Seu ventre — ainda que muita gente não canse de se perguntar: terá valido a pena?