O filme premiado da Netflix que revela as profundezas da mente humana

O filme premiado da Netflix que revela as profundezas da mente humana

O cinema contemporâneo parece ter redescoberto o plano-sequência, recurso técnico-narrativo em que o espectador tem a sensação de ser tragado para dentro da cena, independentemente da sua vontade. Produções dos anos 1970 e 1980, a exemplo de “Uma Mulher sob Influência” (1974), dirigido por John Cassavettes (1929-1989), e “Hannah e Suas Irmãs” (1986), de Woody Allen, funcionam como uma espécie de torvelinho que surgem na tela e cuja força centrípeta, descomunal e inimaginável dada a leveza apenas sugerida de seus respectivos enredos, sugam o público, igualzinho nos desenhos animados. Em comum, mais do que a intromissão da câmera na vida de quem assiste, os filmes de Cassavettes e Allen se utilizam de muita gente num mesmo quadro, diálogos lançados como projéteis por uma metralhadora e a confusão intencional do discurso, que se apresenta de um jeito, mas deseja passar uma ideia diametralmente oposta.

“Pieces of a Woman” (2020), primeiro filme em língua inglesa do diretor húngaro Kornél Mundruczó, também parte de um plano-sequência milimetricamente estudado e da mesma forma que nos antecessores, as falas são disparadas a sangue frio sobre o público — e o mais contraditório (e genial) é que nenhuma é por acaso; tudo o que é dito na trama, em especial nos primeiros 25 minutos, tem uma razão especial de ser. A única diferença é presenciarmos aqui os momentos mais singulares e fundamentais da vida de um casal, acompanhado por mais uma mulher, três atores que preenchem uma imensidão de emoções.

Esses instantes são os mais significativos da vida de Martha Weiss, incorporada com total entrega por Vanessa Kirby, e seu marido, Sean, vivido por Shia LaBeouf, mas logo se vai ver que não serão os mais felizes — malgrado tivessem de sê-los, em a vida respeitando a lógica dos acontecimentos. Martha está dando à luz a filha deles, Yvette, em casa, assistida pela parteira Eva, de Molly Parker, mandada em substituição à obstetra, que tivera um compromisso de última hora. Os três se deslocam num périplo agônico por sala, quarto e banheiro, dizendo as coisas desconexas que se deve dizer em circunstâncias semelhantes, Martha mais do que os outros dois, decerto por causa da dor. Elogia a beleza do marido — lance de mestre do roteiro, uma vez que a protagonista está no auge de sua feminilidade e, ao mesmo tempo, de todo vulnerável a ele —, faz uma pergunta sobre os passos seguintes do procedimento, reclama do desconforto físico, urra. Os intervalos entre uma e outra contração se espaçam cada vez menos, a bolsa estoura, a pulsação cardíaca da criança acelera, o bebê é tirado do ventre da mãe. Martha mal consegue sentir o cheiro que a filha exala e Eva nota que alguma coisa vai mal. A recém-nascida não se comporta como alguém que logo terá de se haver com a dureza do mundo, não chora, não esperneia. A doula a examina: Yvette está morta, e junto com ela começa a morrer também aquela pequena família e o amor entre Martha e Sean.

Martha, além de enfrentar o maior drama de sua vida, terá de encarar a mãe, Elizabeth, da veterana Ellen Burstyn, seu verdadeiro carrasco. Elizabeth veio ao mundo em meio à barbárie nazista, enquanto seus pais ainda tentavam emigrar para os Estados Unidos fugindo da perseguição homicida de Adolf Hitler (1889-1945) aos judeus, o que degringolou no Holocausto, o maior genocídio da história. Não demora para que reste implícito que Elizabeth atribui o insucesso do parto de Yvette à própria Martha, evidenciando o relacionamento tóxico que as duas mantêm desde há muito. Não há sororidade possível no drama de Mundruczó: na primeira ocasião em que se reúnem após a tragédia, no cemitério, encomendando a lápide da menina, a mãe enlutada tem um entrevero com o marido por causa da grafia do nome da criança. Sean prefere não continuar a contenda, mas é justamente Elizabeth quem estica a corda, dando razão ao genro. Algum tempo depois, num jantar na casa de Elizabeth, dessa vez com a presença da irmã de Martha, Anita, personagem da comediante Iliza Shlesinger, e outros parentes e amigos, a anfitriã sugere a intenção de pagar para que Sean deixe a filha, o que não seria de todo mau. Em busca de orientação jurídica a fim de mover uma possível ação contra a parteira — iniciativa que a personagem central descartara de saída —, o marido de Martha procura Suzanne, a prima advogada, papel de Sarah Snook. Valendo-se da rejeição da mulher, Sean se permite seduzir por Suzanne, para quem chega a se declarar no encontro na casa de Elizabeth. Equilibrando-se entre a vontade de sucumbir à loucura e resistir e procurar um motivo qualquer para seguir em frente, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. O instinto de autopreservação, contudo, fala mais alto.

A metáfora da maçã, símbolo judaico-cristão que evoca a tentação, o fascínio do mal, mas também a fome de autoconhecimento, de sabedoria — além de amor e fertilidade, esses dois certamente os mais desejados por ela — é usada com lirismo por Mundruczó, que a partir de então passa a construir uma alegoria sublime. Como renascida do inferno da morte, Martha tem uma iluminação e se aprofunda em temas correlatos a jardinagem e cultivo doméstico de árvores frutíferas. Empenhada em se recompor do choque e deixar para trás um pouco de seu trauma, extrai as sementes da fruta e as faz germinar, cada qual no seu compartimento, como num berçário. À luz do “Gênesis” bíblico relido, no qual Martha encarna Eva, a primeira mulher da Criação, pena pelo mundo, tem sua filha à custa de dor e sacrifício, perde-a para a morte, e é, enfim, readmitida no Jardim do Éden, o diretor fala da resiliência de sua protagonista, que, na medida do possível, supera sua tragédia. A sequência final coroa a natureza épica da história: Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que, paulatinamente, volta a se refazer, fiando-se na beleza maldita da vida, a mãe austera, mas zelosa, que não raro nos impinge um castigo muito maior do que nossas faltas, mas sempre empenha uma promessa de felicidade.