É espantoso que alguém se espante com o fato de uma pintura valer milhões de dólares

Conta-se que uma das excentricidades de Salvador Dalí era convidar os amigos para a bebedeira e, no fim, pagar a conta com um desenho feito na hora, em um guardanapo. Pode parecer esperteza. Mas que proprietário recusaria um bilhete premiado, criado por Salvador Dalí, um artista já famoso, em seu tempo? Dalí sabia muito bem que era um fabricante de dinheiro. Dito isso: teria o leitor coragem de pagar 92,2 milhões de dólares por uma pintura? Na cotação do dia (28 de janeiro de 2021), isso era equivalente a 498 milhões de reais, ou centenas de Lamborghinis, na garagem. Essa pintura milionária, de menos de um metro, foi criada por Sandro Botticelli (1445-1510), pintor renascentista. Chama-se “Jovem Segurando um Medalhão”, arrematada naquela data por emissários de um bilionário anônimo, na casa de leilões Sotheby’s, de Nova York. O leigo escandaliza-se com tal coisa apenas porque não se dá ao trabalho de analisar as variáveis implicadas.

Numa escala que vai da menos à mais importante, do ponto de vista do leitor em geral, há pelo menos quatro variáveis: 1) Botticelli é um dos mais representativos artistas de todos os tempos (e daí?); 2) a obra é um objeto cultural valioso, da Renascença, o que significa que seu alcance é universal (e daí?); 3) é uma peça única, já que não existem dois quadros iguais (e daí?). 4) Daí que “Jovem Segurando um Medalhão” também é dinheiro (opa!). A lógica de Salvador Dalí é a mesma do mercado, e aplica-se tanto a Sandro Botticelli quanto a Marcel Duchamp. Em contextos específicos, nem sempre isso foi verdade: o Dadaísmo, no caso, foi a negação total dessa lógica mercantil. Passada a euforia, numa perspectiva histórica de longo prazo, até as obras dadaístas viraram “arte” e, com certeza, também valem milhões, hoje em dia. Os ideais pertencem aos artistas (em tese), não ao mercado.

“Jovem Segurando um Medalhão” equivale literalmente a uma nota de 92 milhões de dólares (se existisse tal nota) ou a barras de ouro no montante correspondente. Daí porque o bilionário que adquiriu o quadro não é um louco que rasga dinheiro. Pelo contrário, adquiriu uma garantia incorruptível. A aquisição que fez na Sotheby’s é investimento seguro, imune à depreciação que pode corroer as moedas correntes, mesmo o dólar. Não é à toa que um dos métodos preferidos da lavagem de dinheiro é “investir” em obras de arte. É bem possível que “Jovem Segurando um Medalhão” saiu da casa de leilões diretamente para o cofre de um banco suíço, sem escala doméstica, devidamente segurada. Se seu comprador tem ou não alguma noção estética ou aprecia arte, pouco importa, embora certamente tenha ouvido especialistas.

Um adendo importante, além daquelas quatro variáveis: valor é atribuição. Acreditamos no valor do dinheiro (ou “moeda”, essa que os mortais comuns usam no dia a dia) apenas porque chama-se “dinheiro”, em vez de “pintura”. E é pintura: em sua forma mais comum, não metalizada, dinheiro é rigorosamente tinta sobre papel, como o desenho de Dalí sobre um guardanapo. A diferença é que toda cédula tem milhões de cópias iguais (a escala é industrial; ninguém é privilegiado por ter uma nota de 100 reais). O que muda entre uma nota de 2 e uma de 200 reais é o desenho de dois zeros e a “crença” de que isso faz toda a diferença, entre uma e outra. Esse desenho da Casa da Moeda, portanto, equivale a 198 reais. Aceitamos isso de forma indiscutível como aceitamos que ouro — um minério extraído do solo — é a coisa mais preciosa do mundo. E aceitamos por aquele motivo: porque aprendemos assim, que valor é um dado socialmente admitido, assimilado. Ninguém discute ou pensa nisso, como se se tratasse de uma verdade pré-existente, metafísica, anterior ao homem. É espantoso, portanto, que alguém se espante com o fato de uma pintura valer 92 milhões de dólares.

Talvez o espanto resulte do caráter utilitarista de nossa cultura, uma vez que a arte não tem a utilidade de um iate. Utilidade nenhuma: é no mínimo tão inútil quanto uma barra de ouro. Acredite se quiser.