Guilherme Dicke e Dalcídio Jurandir: o país dos escritores esquecidos

Guilherme Dicke e Dalcídio Jurandir: o país dos escritores esquecidos

Vivo entre livros e papéis há muitos anos, o que, por extensão natural, também me faz viver entre poeira, estantes abarrotadas e uma eterna caça a traças e mofo. Mais: havendo poeira, eu, evidente e constantemente, tusso.

Já escrevi antes e repito aqui que a minha vida pode ser resumida assim: leio, pago impostos e tusso. A poeira é nossa companheira e não nos faltará. Se a poeira está conosco, quem estará contra nós? Tusso, saudáveis leitores, tusso no horário comercial e nas horas de lazer; tusso acordado e tusso dormindo. Sim, tusso, e tossir talvez até seja café pequeno diante dos problemas psicológicos e psiquiátricos que o excesso de leituras traz. O mais evidente, claro, é o sestro acumulativo; creio mesmo que li em algum lugar que “síndrome de Diógenes” já é doença catalogada no CID. Mas o poço não tem fundo, ou antes, o poço tem pré-sal. Acompanha-nos uma permanente angústia, um zumbido no ouvido nos dizendo que não será possível ler todos os livros do mundo — aliás, aí está a Wikipédia me lembrando que somente cinco países, Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e Alemanha, põem no mercado mais de um milhão de livros por ano, e calcula-se que mais de 100 milhões de livros tenham sido publicados desde o século 15, donde o lamento de Mallarmé, “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros”, hoje só pode ser levado a sério como hipérbole. (Curiosamente, o anúncio de que existem livros demais no mundo foi feito pelo mexicano Gabriel Zaid num — onde mais? — livro precioso, “Los Demasiados Libros”.) Com esses números inflacionados, o fracasso no trabalho de formiguinha de La Fontaine juntadora de livros, percebe-se, é certo (Jorge Luis Borges foi mais otimista quando escreveu que “alguno habrá que no leeremos nunca”; algum, apenas algum não seria lido, acreditava o velho Borges).

Não leremos todos os livros; um esforço, contudo, merece ser feito. E, entre a tosse e a falta de espaço, há vantagens. Por exemplo, num momento qualquer de cansaço por causa de tantas páginas impressas, encontra-se um autor com quem a ligação é imediata — lê-se o danado e cai a ficha estética num minutinho. Fisgados somos, fisgados permaneceremos.

Pois eu ouvira falar de Ricardo Guilherme Dicke e de Dalcídio Jurandir aqui e ali, mas somente agora comprei livros seus. Havia em mim um preconceito qualquer — cultivo os meus preconceitos com desvelo e sopinhas —, talvez certo receio de encontrar mais imitadores de Guimarães Rosa, ou um fastio que me veio de uma literatura brasileira que se quer sempre engajada. Eu estava enganado, confesso, e deixo aqui um trecho de cada autor como penitência. De Ricardo Dicke, o primeiro parágrafo de A Proximidade do Mar:

“Certa noite, Beldroaldo Seminário acordou no cume de um sonho que se elevava no céu, como no cume de uma onda. E, subitamente, não se recordou de mais nada. No entanto, lhe parecera estar encarapitado no ponto mais alto de uma vaga gigantesca, verde, imensa como uma catedral, redonda, como um caracol, com uma cauda comprida, longa, esmeralda, espiralada, acompanhada de pequenas vagas que cresciam seguindo a onda maior. Um cometa oceânico em fuga para sempre. Não se lembrou do sonho: somente aquela culminância de roda gigantesca em espiral de um parque de diversões que tocava no firmamento.”

Agora, o Dalcídio Jurandir de Três Casas e um Rio:

“Antes de enfiar a linha por uma fenda do soalho, no meio da varanda, o menino colava o olho para espiar, lá embaixo, o que havia e imaginava na enchente escura. Por ali, a princípio, quando chegavam as grandes chuvas, via os sapos saltando na lama, esta e aquela borboleta de misteriosa cor e procedência, o bico esquivo da derradeira galinha aproveitando os últimos minutos do chão há pouco poeirento onde ciscava; depois, peixes na água transparente. Agora, à noite, mais na sua imaginação que na água, passavam ilhas de vaga-lumes e saúvas, restos de ninhos de peixe tamuatá, a cabeça de um jacaré adormecido e um puraqué, o peixe elétrico, que daria o choque, como tanto desejaria o menino, para iluminar por um instante, talvez no rumo do galinheiro ou das palhoças vizinhas, a passagem da cobra sucuriju.”

Há poeira e tosse? Paciência. Este Brasilzão véi ainda pode ser um espanto, não?