Matando cachorro a grito e a cacete de ferro

Matando cachorro a grito e a cacete de ferro

Tomei pena de escritor. Agora, escutai-me. Pior que isso, lede-me. Sou eu quem vos escreve torto por certas mãos esquálidas em transe. Começarei em auto-estilo: verbetes de baixo calão. Porra. Fui eu quem assoprou a porra da chama quando das trevas se fez a luz. Desde então, eu fui o jugo. Desde então, eu fui o pus. Fui eu que propus ao Velho Pai — o divino carrasco ancestral — um churrasco no Jardim do Éden feito com as próprias costelas de Adão. Eu assisti de camarote à queima das bruxas nas fogueiras da Santa Inquisição. Livra-me, ó Pai, dos teus santos comezinhos. Saíram-se ainda piores do que eu. Seres possessos por trás de semblantes angelicais. Não vos enganeis: o mundo é um curral de demônios.

Eu nunca vou morrer. Eu nunca vou sofrer. Sou uma dúvida impagável do universo. Eu me ocupo em colocar farpas nos dedos das mãos, espinhos nas hastes das rosas e pedras pelos caminhos. A mentira é endêmica, literal e acadêmica. Não sou muito afeito a falar a verdade, mas, o fato é que a poesia não me afeta. Eu amo a mulher, criatura abjeta. Eu bato em mulher com os punhos cerrados, porrada na dose certa. Eu mato mulher quando erro a mão num mero acidente de percurso que sequer me desconcerta. Eu com certeza meto a colher em briga de casal até engrossar o caldo.

Não sou humano. Eu já nasci malvado. Foi Papai quem me fez assim. Fui eu, por exemplo, quem, de frente ao espelho, aparou o bigode de Adolf Hitler quando ele sonhava em conquistar o mundo. Saiu-se a cara do Carlitos, só que a bengala virou fuzil. Ó puta que jamais me pariu, quisera te sodomizar neste grave e contente instante. Eu me amarro no estrondo dos testes nucleares, no efeito asfixiante do gás sarin e no pavor inusitado dos atentados cometidos à bomba.

A bondade é ordinária e irrisória. O bom do mal é a surpresa servil. Fui eu quem se regozijou com os cogumelos radioativos que brotaram no céu de anil. Eu vi, mais que isso, eu senti no trajeto cavernoso das minhas ventas o vapor carbonizado de milhares de japinhas derretendo feito cera. Seria um genocídio uma festa? Sim. A festa da carnificina. Por essas e outras, exijo uma estátua na galeria do Museu de Madame Tussauds. O que seria do homem sem o diabo? Chuva na grama. Arco-íris na montanha. Colibris no jardim. Natureza morta. Nada mais.

Eu fui concebido, provavelmente, por um incorrigível equívoco celestial, para confundir os homens. Existirá mesmo um deus acima de tudo e de todos? Perguntai. Vede vós. Já decapitei grávidas. Chutei cabeças. Torturei velhotas. Violei paralíticos. Ateei fogo em mendigos. Empalei negros. Esfacelei viados. Matei cachorro a grito e a cacete de ferro. Enfim, foi assim desde o princípio: eu já ferrei com tudo; eu, acima de todos, abaixo do Pai, numa escala hierárquica bisonha, complexa, intangível; o organograma existencial do bem e do mal em prol e em detrimento das ignóbeis míseras criaturas que sois vós. Assim sereis. Para sempre. Até o fim dos dias. Amém.