Paulo Coelho, um professor na escola de Harry Potter

Os novos admiradores de Paulo Coelho adotaram o mesmo discurso de defesa que o próprio Mago apresenta desde a década de 1980: quem não gosta de seus livros é pedante e tem inveja de seu sucesso internacional, despeito por ele ser lido e festejado por intelectuais como Madonna, Bill Clinton e Lula

Falar mal de Paulo Coelho é mais ou menos como jogar bocha. É esporte de velhos. Eu sou velho. Muito, muito velho. Sou do tempo em que Paulo Coelho era uma piada literária. Nessa época, o Mago era convidado para participar de programas de TV, debates e entrevistas apenas para ser desafiado a fazer chover ou ficar invisível diante das câmeras. Os apresentadores mais condescendentes davam corda, deixavam-no falar suas platitudes, ouvindo com expressão enfadada ou com um risinho no canto da boca. Faziam questão de, elegantemente ou não, demonstrar o quanto o desprezavam. Não gostar de Paulo Coelho era requisito obrigatório para bancar o intelectual sério. A zoeira era tão grande que eu mesmo criei uma sátira em quadrinhos: Paul Rabbit, um homem de letras. Meu personagem tinha rabinho de cavalo e tudo. Nas distantes décadas de 1980 e 1990, nas quais pilotos de Fórmula 1 viam Deus ao fazer curvas e todo mundo sabia o nome de seu anjo cabalístico, Paulo Coelho tinha mais ou menos a mesma respeitabilidade mística que Inri Cristo, Toninho do Diabo e Thomas Green Morton, o “Homem do Rá”.

Mas o mago Paulo, armado com seu pé de coelho, fez um rá e mudou tudo. Hoje, Paulo Coelho é “highlander” da Academia Brasileira de Letras, ninguém mais o chama de bruxo, nem de parceiro de Raul Seixas, virou ídolo dos jovens nerds da vida e é entrevistado com honras de chefe de estado por Pedro Bial, o homem que em seus tempos áureos (antes do BBB) “derrubou” o Muro de Berlin, “driblou” o Fenômeno em plena Copa do Mundo e dirigiu um filme baseado em Guimarães Rosa. Como explicar essa inversão de valores? Quando Paulo Coelho deixou de ser autoajuda e virou literatura? Foi culpa de Harry Potter?

Notei que algo estava estranho quando fiz uma enquete com meus alunos na universidade sobre quais livros estavam lendo. Para minha surpresa, um deles citou Paulo Coelho. Fiquei surpreso, pois me parecia que, após tantas décadas na vitrine, a fama de Paulo Coelho havia atingido o estágio do que chamo “nostalgia Sidney Magal”. Ou seja: é uma coisa meio bobinha, porém divertida, que os tiozões do pavê gostam, mas que a meninada conhece vagamente e que só reaparecem na grande mídia pop quando são convidados para participar do jogo do banquinho no Programa Raul Gil. Nada disso. Meu aluno disse que estava lendo e gostando muito de “O Diário de um Mago”.

“Sinto um abalo na Força”, pensei. Mas não me convenci. Se uma andorinha não faz verão, um leitor não faz estatística. Perguntei para o doutor Google o que estava acontecendo e recebi algumas respostas ao mesmo tempo esclarecedoras e preocupantes. Descobri que toda a obra de Paulo Coelho foi relançada com pompa e circunstância. Aparentemente, a campanha publicitária está mirando na nova geração de leitores. É inegável que o nome Paulo Coelho é uma marca. Sendo trabalhada devidamente, longe do bullying dos cadernos culturais do passado, essa marca pode renascer. Parece que está dando certo. Pesquisei canais especializados em literatura voltada para jovens no YouTube e constatei que meu aluno não está sozinho. Para maioria dos yotubers, vlogueiros, booktubers e influenciadores digitais, Paulo Coelho é um grande escritor. Dono de quase o mesmo status literário que figuras como J. K. Rowling ou George R. R. Martin, sinônimos de autores geniais para grande parte da nova geração.

Os argumentos dos jovens críticos virtuais são quase sempre os mesmos. Os livros de Paulo Coelho são bons porque são simples, fáceis de ler, edificantes, mágicos e cheios de bons exemplos. Ou seja: tudo que no passado era condenado no autor, seu estilo rasteiro, pobreza de imaginação, sentimentalismo apelativo e misticismo barato, tornou-se qualidade literária. Se antes ser pego lendo Paulo Coelho pegava mal, agora é cult. Curiosamente, os novos admiradores de Paulo Coelho adotaram o mesmo discurso de defesa que o próprio Mago apresenta desde a década de 1980: quem não gosta de seus livros é pedante e tem inveja de seu sucesso internacional, despeito por ele ser lido e festejado por intelectuais como Madonna, Bill Clinton e Lula. Simples assim. Não concebem que um crítico possa desaprovar os livros por motivos meramente técnicos e estéticos. O gosto médio dos leitores retrocedeu? Ou os leitores apenas perderam o acanhamento? É culpa de Harry Potter? Como diria Glória Pires, “não sou capaz de opinar”.

Seja como for, ninguém pode me acusar de não ter dado a devida chance para obra coelhiana. Na verdade, dei chances demais. Talvez inspirado por Umberto Eco, sou um cultor do trash. Li muito quadrinho vagabundo, ouvi muita música brega, assisti todos os filmes da saga “Sexta-Feira 13” e li muito Paulo Coelho. Quais? Ninguém perguntou, mas respondo mesmo assim: “O Diário de um Mago”, “O Alquimista”, “O Dom Supremo”, “Brida”, “As Valkírias”, “Nas Margens do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei”, “Maktub”, “O Monte Cinco”, “Manual do Guerreiro da Luz”, “O Demônio e a Srta. Prym”, “O Zahir”, “O Vencedor Está Só” e de quebra a volumoso biografia escrita por Fernando Morais, “O Mago”. Também assisti ao fraquinho filme americano baseado em “Veronika Decide Morrer”. Não posso esquecer da cinebiografia “Não Pare na Pista — A Melhor História de Paulo Coelho” (2014), dirigida pelo cineasta Daniel Augusto. Sim, aquele filme com o bom ator Júlio Andrade usando uma tosca máscara de borracha de Paulo Coelho, como se estivesse no Halloween.

Apesar desse probleminha que salta aos olhos, o filme de Daniel Augusto possui seus méritos. Um dele é o subtítulo. É absoluta verdade que a melhor história de Paulo Coelho foi sua vida. Tenho certeza que ele reescreveu boa parte dela, mas isso não importa, uma vez que a biografia é um gênero narrativo manipulável e incompleto por definição. Às vezes é mais ficcional que a ficção. Não é o caso de discutir aqui as aventuras e desventuras do Mago, mas admito que, embora não aprecie sua escrita, simpatizo com Paulo Coelho.

Muitas vezes ele passa do tom, sobretudo quando procura diminuir figuras gigantescas como James Joyce, mas, no geral, me divirto com sua pose de lenda viva autoconsciente. Do tipo que diz sem dizer “me respeita que sou arqueiro zen e vou enfiar uma flecha no meio dessa sua cara feia”. Gargalho de suas histórias estilo Forrest Gump, como a famosa “não peguei a Sharon Stone por um triz”. Acho hilariante até sua pedância, a maneira como resolve qualquer polêmica artística dando carteiradas do tipo “sou mais rico que você, cale a boca”. Não vejo nenhum problema em nada disso. Paulo Coelho é um caso para sociologia, para antropologia, não para a crítica literária. Não se pode levá-lo muito à sério. Paulo Coelho é um personagem, criado e interpretado por Paulo Coelho. Um desses tipos que amamos odiar. Convenhamos, o sujeito conversa com anjos, fica invisível, usa espada e atira flechas, só pode mesmo ser um personagem de quadrinhos, filme B ou um professor na escola de Harry Potter.

Mais do que isso, Paulo Coelho é mesmo um tipo de Sidney Magal. Um artista que de tão ruim, dá a volta completa e fica bom. É melhor, por exemplo, que o Tiririca, que é só ruim mesmo, e só lhe sobrou ser deputado. Paulo Coelho não. Basta garimpar. Há algumas boas passagens em “O Alquimista”, “O Diário de um Mago” e “O Vencedor Está Só”. Que eu me lembre é só, mas já é muito melhor do que as lastimáveis Stephenie Meyer e E. L. James. Na dúvida, se ler as primeiras páginas de um de seus livros e não aguentar, basta fechar o volume e gritar a todo volume: “Toca Raul!”.

Lembro-me que numa entrevista recente (para o Bial?) Paulo Coelho contou que coloca em uma lista negra o nome de todo mundo que fala mal dele. Exatamente por simpatizar com o Mago, seria uma honra entrar para essa lista.

Paulo, ei Paulo, se estiver lendo essas mal traçadas linhas, por favor, me coloque em sua lista negra. Rá! Esse Rá não foi de Thomas Green Morton, foi de Serginho Mallandro.