Não importa o vencedor das eleições, o Whatsapp mudou o jeito de encararmos algumas pessoas

Não importa o vencedor das eleições, o Whatsapp mudou o jeito de encararmos algumas pessoas

Não vim aqui para falar sobre o posicionamento político individual nem suas justificativas. Não debaterei os riscos da adesão do discurso reacionário. Também não discutirei os erros da esquerda ou da direita. Nem corrupção generalizada, justiças pelas metades ou mentiras galopantes de todos os lados. Não analisarei os impactos socioeconômicos em jogo. Esquecerei que o mundo nos observa preocupado. Por instantes, pararei de pensar no cenário ideológico brasileiro como chacota para humoristas. Até internacionais. Deixo minhas convicções fora de contexto para tentar falar, com alguma isenção, sobre uma grande crise deflagrada nas eleições 2018: a fratura afetiva exposta pelas redes socais.

Estamos feridos. Amizades desfeitas, familiares brigados, casais separados, colegas de trabalho discutindo até mesmo quando estão do mesmo lado. Cada qual se sentindo no direito de legitimar sua ideia mais que a do outro.  Obviamente, eliminando aquele que pensa diferente. Como se a existência fosse o aceitar ou deletar pessoas de sua conveniente lista de contatos virtuais. Sejamos adultos. A bolha identitária dos tweets ácidos, Instagrans perfeitos, Facebooks politicamente corretos é mera fantasia. Militar apenas através de uma tela é pequeno e covarde. Mais que interessados, internautas vidrados em hashtags automatizadas e compartilhamentos frenéticos.  Dados com ou sem embasamento, propagados por estudiosos e ignorantes, que afetam os laços sociais e interferem no resultado das eleições.

É que o bombardeiro de informações, opiniões e enxurradas de fakenews, em foto, áudio e vídeo desorienta e altera os sentidos. Ao não tolerar a escuta respeitosa do diverso, vemos o outro diferente. Como se cheirasse mal, tateamos suas convicções até a intolerância transformar indivíduo em inimigo, deixando o gosto amargo da ruptura do relacionamento em nossas bocas.

Olha, defendo, cada dia mais, o direito a escolha daquilo e daquele com quem convivemos, sabe? Nem todo parente é próximo. Algumas amizades bonitas têm, sim, prazo de validade. E nossos parceiros precisam olhar, ao menos, para o mesmo rumo. Entendo claramente os perigos específicos desse pleito. Sonho Xangrilá, a comunidade alternativa imaginária que criei com uma amiga-irmã. Também estou com medo. Inegavelmente muitas vezes errei a mão em discussões. Já me flagrei julgando o que acredito não ser da alçada de ninguém. Contudo, considero um exagero desrespeitoso a onda de tachação rasa daqueles que convivemos. A luta pela democracia deve ser, no mínimo, democrática.

Fundada no dano, a política, para o filósofo Jacques Rancière, tem força na divergência como busca de igualdade e, paradoxalmente, manifesta-se, às vezes, por meio injusto e desigual. O tal desentendimento a que se refere o estudioso residiria, efetivamente, entre o pensador e seu pensamento, como define: “O litígio ocorre acerca do objeto de discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto”. É, portanto, uma batalha entre atos e atores. Traduzindo Rancière às brigas nos grupos de WhatsApp quer dizer que, em dado momento, o argumento político se perde no encantamento do defensor com o próprio ego empoderado pela rede social. Nem sempre. Muitas das vezes.

Participo de diversos páginas virtuais de discussão de política. Faço parte de muitos grupos de WhatsApp para tratar do assunto. O tema é constante nos grupos pessoais. Tive que silenciar todos. Não param de apitar. Até de madrugada. Agora desligo meu celular porque ficava tentada a responder, passar para frente ou desmentir. É que passamos a viver do pior momento político do século. E isso está nos prejudicando. Culpa dos políticos? Nada. Isso não é só de agora. Há muito tempo a tal alegria brasileira está em queda livre. A edição desse ano do Relatório Mundial da Felicidade produzido pelas Nações Unidas revelou que o Brasil caiu seis posições no ranking dos países mais felizes, ocupando agora o 28ª lugar dentre os 156 analisados.  Então, de onde vem isso?

Além do cenário real de horror que vivemos, acho que muitas vezes estamos nos engalfinhando em nome da política porque estamos sem causa própria para defender. E, diante do vazio amplificado pelo virtual, tornou-se irreparável o efeito do fato político no afeto de muitos pares.  A convivência está comprometida. E como prosseguir? Não sei. É por isso que recorro ao inconfundível dos sentidos, o sexto. Creio mais na intuição que na segregação como salvação. E o não dito, conselheiro na terra da verborragia. Quando atuo é que reafirmo minha postura política, ética e ideológica. Não adianta esconder. O que a gente é, escorre pelas mãos.  Quando estamos desavisados e, teoricamente, sem monitoramento. Como um se porta em uma fila preferencial diz mais que um interminável post de ódio ou amor a algum partido.

Repudio veementemente qualquer ato contra os direitos individuais. Não abrir mão disso não me faz uma tirana. Obviamente minhas escolhas afetivas se dão a partir daí. Todavia, não sou afeita à ruptura bruta desnecessária. Busco, primeiramente, a tolerância na esperança de ser tolerada. Nem sempre consigo. E estou angustiada com tudo isso. Para mim, independente dos próximos resultados eleitorais sairemos todos derrotados. O estrago já foi feito. Vão-se os amigos, ficam as convicções. Não deixarei, nunca, de lutar por um país melhor. Agora, honestamente, estou cansada demais. Por isso, tratarei de focar na redução de danos nessa reta final. Desgastes desnecessários estão obsoletos e démodés em tempos de contingenciamento de energia. Em verdade, nossa desilusão ultrapassa a política.