Mantenha distância. Propriedade particular. Não é permitido se matar nessa área

Mantenha distância. Propriedade particular. Não é permitido se matar nessa área

— Você não pode se matar aqui, parceiro. Não leu a placa?

O rapaz não tinha percebido que havia um letreiro de advertência fincado na beirada do desfiladeiro, com os seguintes dizeres grafados com letras-de-sangue: “Propriedade particular. Mantenha distância. Não é permitido se suicidar-se nesta área!”

— Desculpe, senhor. Não ando com gasturas de morrer tão jovem. Devo alertá-lo, no entanto, que o termo “se suicidar-se” fere de morte uma das mais elementares normas gramaticais da língua pátria.

— Vai querer bancar o espertinho comigo, garoto? Caia fora. Não pode saltar e ponto final. Não aqui na minha montanha.

Para o rapazote, o frio daquela manhã era de lascar o cano. A sensação era a de que os testículos tinham se escondido na garganta onde antes jaziam desavisadas as amígdalas cor-de-framboesa que foram magistralmente extirpadas pelos alicates fumegantes de Doctor Dog, o cão-de-jaleco, um talentoso charlatão que se autoproclamava médico especialista em crupe, gravidez psicológica e furúnculos, no remoto condado de Satiric City. O lugar era verde e bucólico, com direito a moscas-do-chifre e carneirinhos pastando nos campos de pistache. Havia uma cabana construída com pau-dar-em-doido da qual subia uma fumacinha branca pela chaminé de tijolinhos vermelhos. Trinta jardas adiante, caminhando em direção ao poente, chegava-se até a borda do precipício dentro do qual, volta-e-meia, alguém saltava para a morte. O lugar já tinha perdido valor venal e se tornado pitoresco por causa disso.

— Eu vim aqui só para apreciar a paisagem, senhor. Sossegue. Não tenho a menor intenção de me atirar no Gogó-da-Ema, embora, motivos de desapontamento não me faltem. Quantos pés até o riozinho lá embaixo?

— Não tem mais um riozinho lá embaixo, filho. Por causa do projeto nacional de transposição das águas e das propinas parlamentares, o rio secou completamente. Só restam poeira, pedras, poesia triste e incontáveis caveiras de peixe. Nunca medi quantos palmos tem o desfiladeiro, mas, posso garantir que é bem alto. Alto o suficiente para que o sujeito se arrependa de ter saltado num vazio abissal que parece não ter fim.

— Às vezes, a pessoa se sente mais vazia do que o próprio cânion. É uma sensação muito triste. Muitas vezes, incontrolável. Qual o seu nome, senhor?

— Você pode me chamar do que quiser, filho. Mas sou conhecido pela alcunha de Sal.

— Sal?

— Sal. Não entendo toda essa gente que vem aqui se matar. Todas as vezes que eu me sinto vazio por dentro, bebo até completar o tanque e amorteço os miolos. Geralmente, funciona. Qual é o seu nome, filho?

— Son.

— Humm…

— Pelo que vejo, você mora sozinho. Tem uma família? Tem mulher e filhos, Sal?

— Não. Eu nunca me casei. Por favor, não espalhe por aí, mas, o fato é que eu sou adepto ao bestialismo. Perdi o jeito de amar. Prefiro fazer sexo com animais. Mamíferos. Nada que caminhe sobre duas patas, se é que me entende.

— Já conheci pessoas excêntricas, mas… Você é um sujeito completamente fora dos padrões.

— Faço o melhor que posso para não me enquadrar, filho.

— O que você cria aqui no rancho?

— Crio confusão.

— Confusão? Rá! Como assim? Não entendi, Sal.

— Eu implico com as pessoas que vêm até aqui se atirar da minha montanha. Meu papel é demovê-las da ideia e preservar o mais incólume possível o meu pedaço de chão. Para manter a minha subsistência, eu vivo de renda. Tenho grana aplicada num maldito banco.

— Herança familiar, eu suponho.

— Negativo. Dos meus pais, herdei só a tristeza, a sífilis congênita e a mais completa aversão à raça humana. Ambos já são falecidos. Morreram de desgosto quando eu ainda era uma criancinha de colo. Eu devia ter sucumbido pela febre-do-umbigo quando tive chance. Então, fui parar num abrigo para menores, numa casa de padres em Weak Men. Alguns anos mais tarde, quando ainda era bem jovem como você, cansado de sofrer tanta iniquidade dentro daquele inferno, eu pilhei a igreja.

— Uau!

— Fiz desse crime o meu pé-de-meia. Foi assim que consegui grana para comprar esse maravilhoso e desvalorizado pedaço da montanha. E aqui estamos nós conversando à beira de um precipício dentro do qual, volta e meia, alguém cisma em se atirar.

— Você roubou a poderosa igreja católica, Sal? (risos)

— Foi merecido. Pode ter certeza, Son. Até o Papa aprovaria.

— Meu Deus!

— Não me entenda errado, garoto. Frade Fradinho era um sacerdote efeminado, um sacripanta, um pederasta, um contumaz abusador de meninos que prestava serviços para o Vaticano. Quando completei 14, saquei o que estava acontecendo de sórdido naquele antro cristão. Então, decidi aplicar no sujeito um corretivo, uma inesquecível surra-de-castiçais. Com o meu algoz desacordado, saqueei a sacristia. Catei dinheiro em espécie e todas as peças banhadas em ouro que consegui abraçar. Aproveitei o ensejo para roubar a velha Kombi azul-e-branco. Escapei do abrigo. E aqui estamos nós, falando dos meus pecados e dos pecados da igreja, à beira de um abismo que, muitas vezes, parece bastante convidativo para um mergulho, é preciso admitir.

— Sinto muito, Sal. É uma história escabrosa. Você faz ideia de quantas pessoas já pularam no Gogó-da-Ema?

— Nunca contei os corpos, filho. Mas foi muita gente vinda de Satiric City, do Buraco Azul, do Cu-do-peru e imediações. Na verdade, eu só ficava sabendo que alguém tinha se matado quando os urubus-veganos-de-um-olho-só começavam a voar em círculo sobre o desfiladeiro, como se estivessem farejando e repugnando o cheiro da carniça humana. Meu olfato, que sempre foi ruim, praticamente acabou de tanto eu cheirar problemas, Son.

— Parece epidêmica essa onda de suicídios. É estarrecedor. É sinal dos tempos. Eu acho que tanta gente se matando pode ser explicado pela falta de Jesus no coração, Sal.

— Jesus tá cagando pra nós, filho. Não se engane. Você não é especial. Eu também não. Ninguém é. Somos uma multidão de ignorantes minimamente civilizados lutando pela sobrevivência, na medida do impossível. Tem gente que não suporta a pressão emocional e começa a se interessar por cordas, prédios e trabucos.

— Você tem uma bela propriedade aqui, Sal. Se os deprimentes de Satiric City e arredores viessem se matar numa manhã ensolarada como a de hoje, garanto que mudariam de ideia. Esse visual é comovente. Faz a gente pensar o quanto viver poderia ser mais simples.

— Às vezes, me ocorre saltar também, filho.

— Tá zoando comigo.

— Falo sério, Son. Já pensei em pular. E bater as asas. E voar imponente feito uma águia, sobre um rio que secou de tantos problemas. Mas, não posso ser pássaro, isso parece óbvio. Deus não dá asas às cobras, é o que se diz por aí. Então… Bem… Eu acho que vou acender um Jeronimo’s e me acalmar um pouco. Aceita um cigarro, filho.

— Demorou, Sal. Demorou…