A vida é um filme em preto e branco: cabe a nós dar cor às nossas cenas

A vida é um filme em preto e branco: cabe a nós dar cor às nossas cenas

Fazia calor naquela tarde de inverno seco. Pelas ruas do Centro Histórico de uma cidade colonial, enquanto me equilibrava para andar sobre pedras distribuídas em paralelepípedos tortos, seguia mentalmente reclamando por ter calçado botas e vestido roupa quente, e enquanto suava minhas lamúrias, tentava escapar dos medos e dúvidas que perseguiam meus passos.

Estava apressada sem estar atrasada. Andava tão inquieta que quase não o vi: foi o sorriso dele que me fez parar. Coloquei algumas moedas na cestinha. Ouvi a melodia triste — que me fez sorrir-lhe de volta — do violão velho e desafinado que perturbou o som do meu silêncio.

Aproximei-me do músico andarilho. Ele estava sentado sobre uma canga encardida e rasgada, que também acomodava três preguiçosos cães vira-latas. Tentei decifrar qual música era aquela; parecia-me familiar, mas desisti. Não importava. Eram notas da simplicidade vestida de arte e esperança. Agradeci ao homem desconhecido e segui meu caminho. Afinal, tinha pressa e queria chegar logo ao meu destino.

Meu espírito impaciente começou a me incomodar. Eu estava de férias, mas a inquietude da vida não me dera licença. Desiludida, parecia que nada se encaixava. Não importavam todas as coisas que eu tinha conquistado, doía aquilo que me faltava — mesmo quando eu não sabia o que era. Preferia ficar remoendo minhas inseguranças. Quanto mais sofria, paradoxalmente, mais me sentia reconfortada. Porém, somente muito tempo depois fui entender que aquele conforto era ilusório. Eu continuava presa ao abismo da morte em vida.

Aquele abismo era bombardeado por uma metralhadora de questionamentos. “E se eu tivesse escolhido outra profissão?”. “Se tivesse me casado?”. “Se tivesse tido filhos?”. “Se tivesse pego a bifurcação para a direita e não para a esquerda?”. “Se eu não tivesse nascido?!”.

Parei no meio da rua colonial e tive uma revelação. Na verdade, foi mais como uma explosão interna, daquelas que fazem com que a gente mude o rumo da vida: eu precisava mudar a maneira de encarar os meus problemas.

Há pouco tempo assisti ao filme “A Felicidade não se Compra”. A primeira coisa que pensei foi por que ainda não tinha visto esse clássico dirigido por Frank Capra. Filmado em 1946, sua história continua atual até hoje. Tão atual que penetrou em meus sentidos e me levou àquele passeio nas ruas tortas da cidade histórica: “A vida de cada homem toca tantas outras vidas”.

Naquela tarde de inverno seco, passei por uma rua quase deserta e avistei um miserável feliz. Sei que há uma dose de romantismo nessa afirmação, pois o morador de rua enfrenta situações difíceis e humilhantes. Mas a entrega dele para a vida acendeu uma luz dentro de mim: ele estava sorrindo e sentindo a própria música, apesar dos seus infortúnios.

No filme de Capra, a história de George Bailey me deu uma lição de amor e espiritualidade: a vida pode ser maravilhosa mesmo quando isso for improvável. A um pulo da ponte para afundar sua bela existência num rio de amargura, Bailey redescobriu a si mesmo.

A vida é um filme em preto e branco: cabe a nós dar cor às nossas cenas. Apesar de nossas mortes diárias, permanecemos pulsando. Somos seres únicos. Cada um de nós tem a sua importância, onde quer que esteja. Porém damos um preço alto para a nossa felicidade. Queremos tudo aqui e agora. Não temos paciência para esperar ou sensibilidade para aceitar; e deixamos de viver um dia de cada vez.

Dedico esse texto ao homem desconhecido (os melhores anjos devem ser aqueles que ainda não ganharam asas). Quando a felicidade começa a custar caro, penso naquele sorriso relaxado, que não se importava de mostrar a ausência de dentes. Lembro-me da canção que tocou o som do meu silêncio e esqueço, nem que seja por alguns minutos, cada suor, receio e tortuosidade que encontro pelas ruas estreitas da vida.