“Querencia”: eu e Goiânia

“Querencia”: eu e Goiânia

Aqueles que me conhecem sabem: gosto imensamente de viajar. Não só da viagem em si, mas também da sua preparação e, depois, da sua recordação; por isso mesmo, aliás, leio guias de turismo como se fossem clássicos da literatura. Viajo, logo existo; contudo, a cada nova viagem e retorno, as agruras cotidianas desta cidade que consegue superar constantemente os seus próprios limites de desorganização me exasperam e me levam a me perguntar por que aqui permaneço. Goiânia está feia, suja e caótica, não havendo no horizonte possibilidade de grandes melhoras.

Pois nasci nesta mui nobre, leal, benemérita, heroica, invicta e boa cidade de Goiânia. O ano era 1973 e o feérico e auspicioso evento ocorreu na velha Maternidade Modelo, no Setor Sul, bairro da minha infância. Mas eu verdadeiramente a conheci, por assim dizer, já adulto: somente mais velho fiquei em termos com os muitos momentos de desgosto que aqui tive e sigo tendo. Porém, assim como Santo Agostinho, que se perguntava por que não conhecera Deus mais jovem, lamento não ter percebido durante minha infância e juventude tudo o que Goiânia poderia me dar. Hoje eu o faço, claro, com as dores das percepções tardias e as novas feridas das suas incivilidades recentes. De qualquer maneira, isto tudo não tem muita importância: aqui nasci, aqui fiquei, aqui estou.

No fundo, tenho vários motivos para gostar da cidade, alguns prosaicos, outros mais complexos, a maioria não dizendo respeito à cidade em si e sim a mim mesmo, porque ela é o meu entorno — tivesse eu nascido em outra cidade, diversa seria a minha paisagem afetiva. Há em espanhol a palavra “querencia”, significando o lugar onde somos mais fortes porque nele podemos deixar transparecer quem realmente somos ou porque nele formamos o nosso caráter e a nossa personalidade (também em português se usa “querência”, creio, principalmente no Rio Grande do Sul, imagino que por influência dos vizinhos uruguaios e argentinos, mas com o sentido mais restrito de local de nascimento ou residência). Goiânia é a minha “querencia”, portanto, nos dois sentidos.

Sim, todos nós temos a nossa geografia pessoal e alguma infraestrutura próxima (barbeiro, lavanderia, restaurante preferido, casas de amigos, essas coisas que nos situam “em casa”), e as temos em qualquer lugar. Para mim, calhou ser Goiânia. Geografia, já se disse e eu confirmo, é mesmo destino, e essa Goiânia privada que possuo desde a minha infância remota me estragou para outras cidades.

Esses motivos que me fazem gostar de Goiânia têm certa dose de lirismo, daquele tipo que causa mais críticas que emoções. Estilo engenho de açúcar, digamos assim, escorrendo melaço açucarado. Novamente, isso pouco importa: lembro que Paulo Mendes Campos, seguindo a trilha de Baudelaire, dizia que é preciso estar sempre bêbado de algo, até mesmo, se necessário, de lirismo. Portanto, listo-os a seguir um tanto respeitosamente, mas também com a vaga impressão de que eu melhor faria se não expusesse sentimentos deste modo piegas.

Ou talvez tudo isto não seja exatamente lirismo de terceira categoria, talvez seja apenas exposição daquilo que realmente sou: um nostálgico. Há muito sei que vivo sempre no presente e, ao mesmo tempo, numa dimensão qualquer do passado (“O passado”, já dizia Faulkner — ele mesmo ou me engano? —, “não está morto; na verdade, não é nem sequer passado”. Aliás, melhor ainda, a abertura de “O Mensageiro”, de L.P. Hartley, pode ser o meu moto: “O passado é um país estrangeiro: lá as coisas são feitas de maneira diferente”). Como envelheço a passos largos, posso, inclusive, antever um momento em que viverei permanentemente enclausurado numa redoma de lembranças e memórias. É por isso, por exemplo, que os livros e filmes que mais me emocionam narram sagas familiares de gerações, memórias, confrontações com o passado. Enfim, piegas ou nostálgicos, são, entretanto, motivos verdadeiros — que me julguem, então, os leitores. Eis a lista:

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