Clássicos são montanhas literárias que juramos escalar um dia, mas que, ao final da quarta página, nos fazem considerar um mergulho voluntário em qualquer caldeirão fervente de vídeos curtos e listas de supermercado. Ninguém nega que são marcos da civilização ocidental, e que, com frequência, pesam como ela. Tentamos encará-los com seriedade, como se estivessem nos avaliando também, mas o que começa como leitura vira penitência, e o marcador de página passa mais tempo dormindo do que trabalhando. São obras eternas, sim, como a sensação de que nunca vão acabar.
Claro que há os devotos: aqueles seres raros que realmente releram todos esses tomos por puro deleite, provavelmente no idioma original e numa tarde chuvosa. Mas para o restante da humanidade, esses livros habitam o altar da estante alta, inalcançável sem banquinho, onde ficam protegidos do toque humano, e da releitura. Porque uma coisa é ter lido uma vez, sob tortura ou vaidade; outra é retornar voluntariamente ao campo de batalha de frases intermináveis, digressões filosóficas e personagens que somem por duzentas páginas e voltam como se nada.
A pergunta é: são cânones ou castigos? É claro que podemos admirar sua importância, sua complexidade, seu papel na história literária. Podemos até decorar o nome de alguns personagens, principalmente se forem os mesmos do título. Mas quando alguém diz “vou reler esse clássico monumental por prazer”, normalmente queremos chamar a emergência literária. Porque há livros que nos formam, e há livros que nos deformam um pouco no processo. A seguir, cinco obras que, com todo respeito, têm mais chance de serem redescobertas por arqueólogos do que relidas por leitores voluntários.

O monumento narrativo que redefine o conceito de tempo, inclusive o do leitor, abre-se como uma espiral de memória, sensações e chá com madeleine. Mais que contar uma história, é uma tentativa de reconstruir a consciência, fragmentada e elusiva, de um narrador que confunde passado e presente com a desenvoltura de quem domina tanto a gramática quanto o tédio existencial. Não há pressa aqui: os acontecimentos se dissolvem em longos parágrafos onde uma única lembrança pode durar vinte páginas, e uma frase pode ter mais vírgulas do que pontos finais em toda a obra de Hemingway. A experiência exige entrega total, silêncio absoluto e um relacionamento estável com o tempo ocioso. É leitura ou prática espiritual? Em muitos momentos, não parece haver diferença, o que não quer dizer que seja fácil, apenas que é… transcendentalmente difícil.

No centro da trama está um jovem ambicioso, dividido entre o fervor romântico e o cálculo político, em plena França pós-napoleônica. Sua trajetória é menos sobre as escolhas morais do herói do que sobre os dilemas de uma sociedade que balança entre tradição e modernidade, fé e hipocrisia, desejo e manipulação. As páginas são densas em análise psicológica, pontuadas por uma ironia fina e parágrafos que não têm pressa alguma de chegar ao ponto. Enquanto o protagonista tenta escalar as rígidas hierarquias sociais, o leitor tenta não escorregar em digressões que beiram o ensaio sociológico. Há, sim, intensidade, intriga e até escândalo, mas tudo servido com uma colherada generosa de descrição de interiores, tanto das salas quanto das almas. Persistir é possível, mas exige nervos firmes e nenhuma expectativa de ação frenética.

O épico que moldou a literatura portuguesa é uma explosão de erudição clássica, patriotismo marítimo e versos decassílabos que fazem o Google parecer necessário a cada estrofe. Mistura de odisseia imperial com tratado mitológico, conta as façanhas de navegadores lusos como se fossem deuses em missão divina, ou, no mínimo, figuras destinadas à glória (e à glória textual também). Cada canto é uma celebração da língua, mas também um labirinto de construções inversas, latinismos e alusões que pedem mais do que apenas atenção: exigem resistência linguística. Mesmo com monstros marinhos, tempestades e deuses que aparecem com frequência dramática, a leitura caminha no ritmo de uma nau sobrecarregada. Magnífico? Sem dúvida. Releitura por vontade própria? Só se for por puro amor à métrica e ao salitre das glórias passadas.

Imagine um romance que se propõe a dissecar, com minúcia clínica e ritmo glacial, o colapso de uma sociedade imperial em meio à apatia moral e ao excesso de pensamento. Agora, multiplique isso por mil páginas. O protagonista, desprovido de convicções fortes, é o espelho de uma era em suspensão, onde as ideias se sobrepõem aos atos e os personagens, embora intensamente discutam, raramente fazem algo. É uma narrativa intelectual até os ossos, onde cada capítulo pode ser uma aula de filosofia, sociologia e matemática existencial. O autor não está com pressa, nem deseja agradar: quer investigar o que há de vazio por trás da civilização. O problema é que, para o leitor, esse vazio pode parecer, em certos momentos, um buraco negro narrativo, que suga o tempo, a energia e a memória do que aconteceu no capítulo anterior.

Mistura de épico histórico, drama familiar e tratado filosófico, esse romance é como um continente inteiro disfarçado de livro. São centenas de personagens, batalhas descritas com detalhes clínicos e cenas domésticas que, em contraste, parecem repousos à beira do campo de guerra. A complexidade narrativa é grandiosa: alterna marchas napoleônicas e dilemas interiores com fluidez, mas também com a generosidade de quem acha que o leitor nunca vai querer parar. Tolstói escreve como se cada pensamento valesse um tratado, e cada gesto devesse ser examinado por três gerações. O resultado é deslumbrante, e exaustivo. Reler pode até ser um projeto de vida, mas, convenhamos, há mais chances de nos tornarmos generais russos do que de repetirmos essa jornada voluntariamente.