Num mundo distópico, só resta a deuses caídos em desgraça infernizar a vida sempre tão atribulada dos mortais. Amor, destino, poder, redenção, todos esses são temas de “Kaos”, a série da Netflix sobre a onipresença dos pequenos e grandes dilemas da existência que se impõem para cada um, sob um ponto de vista, digamos, olímpico. Idealizada por Charlie Covell, o nome por trás de “The End of the F**king World” (2017; “o fim do maldito mundo, em tradução literal”), uma coleção de pérolas de humor macabro baseada nos miniquadrinhos de Charles Forsman, “Kaos”, ao contrário do que sugere o título, é uma narrativa bastante metódica acerca de contos de fadas clássicos, com uma abordagem moderna e sombria, mirando sobretudo a mitologia grega e explorando nesse vastíssimo universo o amor, o ódio, o fantástico, o cômico, o patético, em oito episódios independentes entre si.
O crítico de arte britânico Roger Scruton (1944-2020) foi um ferrenho defensor da beleza, na pintura, na escultura, nas páginas dos livros, no teatro, no cinema, mas também argumentava que a beleza tinha uma importância tão sua, tão imprescindível para que pudéssemos suportar a vida como ela é, que deveria pautar todo e qualquer comportamento humano, suscitando sempre novas apreensões em torno da simplicidade essencial do belo. Scruton sabia, contudo, que a boa estética não é exatamente algo que se manifesta de forma orgânica no cotidiano das pessoas.
Há que se seguir alguns paradigmas canônicos no que concerne ao requinte da harmonia plástica em produtos culturais, precisamente para que não restasse perdida a genuína ideia de obra de arte, muito distinta de como a entendem marqueteiros que se valem de uma promessa de oxigenação artística para, espertamente, transformar lixo — lixo brilhante e colorido, é verdade, mas lixo assim mesmo — em dinheiro, muito dinheiro. Scruton reconhecia, por óbvio, a importância da violência das máquinas para o desenvolvimento do homem, para que pudesse vencer o desafio da miséria e da fome no rescaldo de tempos de privação e morte, a exemplo do que constatou nos primeiros anos de finda a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Entretanto, Scruton admitia também que com a sofisticação dos equipamentos e técnicas que aceleraram a produção fabril de modo irreversível e determinante, o mundo fora perdendo muito de sua ingenuidade, sua ternura e, o principal, de sua beleza num processo que se alonga desde então e quiçá jamais cesse.
O narrador Prometeu coloca a audiência a par dos últimos ardis de um Zeus particularmente irado e abjeto, ansioso para dar asas a seu plano de aniquilação da humanidade. As tramas protagonizadas por deuses, heróis, monstros e eventos sobrenaturais que explicam a origem do mundo, dos seres humanos e de fenômenos naturais é transposta por Covell para o mundo contemporâneo, que parece ter esquecido a influência dos gregos antigos na literatura, na arte, na filosofia e, claro, na política — essa irremediavelmente desvirtuada em sua constituição original. O Zeus multicolorido de “Kaos” está cansado de levar tudo na esportiva e não quer mais saber de Hera, reservando alguma atenção para Dionísio, seu filho hedonista, mas também esgotado de tantas farras. A partir do quarto capítulo, quando passagens em preto e branco indicam a jornada de alguns personagens no mundo dos mortos, Jeff Goldblum, Janet McTeer e Nabhaan Rizwan dizem, afinal, a que vieram, a trama sai do piloto automático e voa. Não como Ícaro, mas como Scruton.
Série: Kaos
Criação: Charlie Covell
Ano: 2024
Gêneros: Drama
Nota: 8/10