O Poderoso Chefão entre a utopia da família e a História Divulgação / Paramount Pictures

O Poderoso Chefão entre a utopia da família e a História

Um cineasta disse, certa vez, que preferia a adaptação de livros medianos ou menores para o cinema. Grandes obras, segundo ele, são mais complexas e até mesmo impossíveis de se transpor da escrita para as imagens. A mão de quem filma corrige as imperfeições de uma história não tão bem elaborada, dando novo sentido à forma e ao conteúdo. É possível que o caso mais bem sucedido de versão cinematográfica de livro menor seja “O Poderoso Chefão”, de Mario Puzo, que ganhou outra dimensão pelo olhar do diretor Francis Ford Coppola em sua trilogia com o mesmo nome.

Os três filmes de Coppola reinventaram o gênero dos filmes de gângsteres, mafiosos, e criaram cenas que ficaram na memória coletiva mundial. Os diálogos são precisos ao traduzir uma visão sofisticada sobre a sociedade norte-americana. Nada é aleatório nas conversas e nos silêncios dos personagens. A figura de Michael Corleone (interpretado por Al Pacino) não precisa de palavras. Tornou-se clássico o abraço frio e silencioso entre Michael e seu irmão Fredo (feito por John Cazale) no segundo filme da trilogia. A frieza do olhar para um dos seus capangas sela o destino de Fredo.

Quem melhor tirou conclusões relevantes de “O Poderoso Chefão” foi Fredric Jameson. O texto “Reificação e utopia na cultura de massa” tem um título que afasta qualquer leitor, mas é uma porta de entrada para se entender a riqueza do filme de Coppola. Segundo o crítico, o primeiro filme da trilogia carrega uma utopia em torno da questão da família, a imagem do padrinho, para resolver impasses dos Estados Unidos. No segundo filme, rompe-se de vez o ideal familiar que dá lugar ao registro histórico — um traço que o diretor avançou no terceiro e último filme, não analisado por Jameson.

Os três filmes têm festas em suas primeiras sequências. Trata-se de situações em que os personagens e situações dão a tônica do que virá à frente. Grandes narradores são mestres em construir aberturas de suas obras. No primeiro filme, de 1972, aparece de saída a figura de Vito Corleone (feito por Marlon Brando) recebendo convidados no casamento de sua única Connie (Talia Shire). O cenário é uma mansão no subúrbio de Nova York do final dos anos 1940. A câmera passeia para mostrar os personagens, principalmente os filhos de Vito: Sonny, Michael, Fredo e o adotivo Tom Hagen.

A família Corleone representa um espaço de acolhimento, ainda que sejam mafiosos violentos de origem italiana. Contra a hostilidade do mundo e do capitalismo, está ali o padrinho que baseia suas relações em favores e laços de parentesco. O cantor famoso, por exemplo, pede uma ajuda a Vito para resolver seus problemas, o que vai resultar numa das cenas mais brutais do cinema. O desafeto do cantor encontra em sua cama a cabeça cortada de seu cavalo favorito – poucas palavras, muitos silêncios, e o padrinho mostra como lida com os inimigos de seus protegidos. 

Para Jameson, a família criada por Puzo e Coppola é uma figura da coletividade e um desejo utópico da sociedade norte-americana. “Uma síntese narrativa como ‘O Poderoso Chefão’ é possível apenas numa conjunção em que o conteúdo étnico [o imigrante] — a referência a uma coletividade estrangeira — aparece para preencher os antigos esquemas de gangster e para infleti-los poderosamente na direção do social; superpondo à conspiração o material ficcional relacionado a grupos étnicos, ela desencadeia então a função utópica desse paradigma narrativo transformado”, observa.

Mutações familiares

O parentesco é um mecanismo narrativo forte que vem desde as tragédias gregas. Basta lembrar a história de Antígona, de Sófocles, que vê confrontada o seu universo da tradição familiar às ordens do poder estatal. A modernidade, a partir do século 19, é o abandono dos laços de família e a assimilação do espírito público, do que demanda o Estado, para criar outra sociedade. Os Corleone carregam o traço das relações de sangue (pais, filhos, apadrinhados), mas devem ceder espaço aos novos arranjos sociais modernos. É aí que emerge a obsessão de Michael em tirar os negócios familiares das sombras.

O fio narrativo do primeiro “O Poderoso Chefão” é a ascensão gradativa de Michael ao comando dos negócios da família. Tornou-se clássica sua frase de que um determinado assunto particular não é algo pessoal, mas apenas negócios. A utopia da família com Vito vai então ceder espaço para o pragmatismo de Michael, que enxerga o que ninguém vê e tem a precisão de punir adversários. A frieza da inteligência é nada mais do que o espírito do capitalismo empreendedor do século 20. Se for necessário eliminar um parente ou um funcionário que se tornou desleal, que se faça uma execução sumária.

O segundo “O Poderoso Chefão”, de 1975, começa com um funeral na Sicília italiana de 1901. O então menino Vito vê a morte do pai, do irmão e da mãe. O que rege aquele ambiente, a Itália meridional, são as vinganças sem fim, a miséria e a religiosidade. O espectador é levado ao universo sulista, tão bem analisado por Antonio Gramsci. Os laços familiares são constitutivos daquela sociedade e sua moral (a orientação sobre agir). A Itália se moderniza conservando aquele estado de coisas ao sul, onde vai surgir justamente o arranjo social da máfia e sua ordem perversa.

Ao recuar no tempo da trilogia, Coppola inseriu em definitivo a dimensão da História. O sentido da narrativa passa a ser o das relações sociais, e não só o das regras de parentesco. A fuga do pequeno Vito para os Estados Unidos reencena o momento da imigração em massa para a América, que terá a mistura da ética protestante com a moral católica dos europeus. É a família ou a economia que define os rumos do país? São as duas coisas que fazem o parto do capitalismo americano. A pilhagem faz parte tanto do nascedouro da empresa capitalista, como dos negócios ilegais de uma máfia.

O peso da História

Após recontar a trajetória do menino Vito, Coppola dá um salto para o ano de 1958. De novo, uma festa serve de palco para mostrar a galeria de personagens. Michael tornou-se o empresário de hotéis e cassinos em Las Vegas. Mora à beira do Lago Tahoe, no estado de Nevada, onde organiza os festejos da primeira comunhão do filho Anthony. Os favores de Vito no primeiro “O Poderoso Chefão” saem de cena para a entrada da frieza de Michael, que negocia com políticos graúdos para fugir da investigação no Congresso dos Estados Unidos e faz doações para a universidade local.

O segundo filme trilogia intercala dois momentos: a entrada de Vito para o mercado do crime em 1917 (interpretado por Robert de Niro) e os percalços de Michael em 1958. Não é por acaso que o passado esteja em 1917, data da revolução russa. Apareceu ali a alternativa ao capitalismo americano que nasceu de negócios sem freio. O jovem Vito é o sujeito que, pela pobreza, acaba por aderir aos pequenos mandos e desmandos de Nova York. Ele é um italiano que mal fala inglês e se desdobra para cuidar da mulher e dos filhos. A utopia da família se construiu naquele ambiente.

A História invade a tela de vez nas peripécias de Michael para fugir da investigação do Congresso e para legalizar suas atividades. Nessas andanças, ela vai parar em Cuba, na véspera da revolução de Fidel Castro e Che Guevara. O olhar de Coppola aponta para mais uma pilhagem dos norte-americanos, para controlar os negócios da ilha. É neste momento que eclode a violência em Havana e fica evidente o conflito de Michael com o irmão Fredo. Trata-se de um dos melhores usos da tragédia clássica pelo cinema em todos os tempos. O sacrifício é constitutivo para organizar as coisas.

“O fio utópico desse texto fílmico — o material da antiga família patriarcal — desvencilha-se agora, lentamente, deste traço inicial e ideológico e, abrindo caminho no passado para remontar às suas origens históricas, revela suas raízes na formação social pré-capitalista de uma Sicília atrasada e feudal. Daí esses dois impulsos narrativos que são como o reverso um do outro: o mito ideológico da Máfia acaba por gerar a visão autenticamente utópica da libertação revolucionária; já o degradado conteúdo utópico do paradigma familiar finalmente desmascara a si mesmo como sobrevivência de formas mais arcaicas de repressão, sexismo e violência”, diz Jameson.

A trajetória de Michael Corleone se encerra no último filme da trilogia, de 1990. O personagem está velho, doente, e busca uma limpeza final dos seus negócios ao fazer um acordo comercial com Igreja Católica. Coppola coloca seu romance familiar dos Corleone no contexto dos escândalos financeiros do Vaticano na virada dos anos 1970 para os 1980. O filme adota a lógica narrativa de uma ópera, tendo início com uma festa que legitima Michael como benfeitor de obras sociais. A velha loja de azeite, criada pelo imigrante pobre em 1917, tem um dos seus braços na Fundação Vito Corleone.

Michael transfere aos poucos seu poder de mando ao sobrinho Vincent (feito por Andy Garcia) — ele é um filho bastardo de Sonny, assassinado brutalmente numa das vendetas do primeiro “O Poderoso Chefão”. A Igreja Católica torna-se então parceira das empresas dos Corleone. E a máfia continua assim a operar em mercados nos quais nunca se sabe muito bem o que é legal, ilegal ou meramente ilícito — ou seja, estamos diante do capitalismo globalizado de sempre. Como diz a sabedoria de Michael, nada pode ser pessoal, são apenas negócios que estão acima de tudo.