O livro que Emil Cioran escreveu para não se suicidar

O livro que Emil Cioran escreveu para não se suicidar

Emil Cioran, um dos filósofos mais pessimistas a caminhar sobre a terra, escreveu “Nos Cumes do Desespero” em 1933, aos 22 anos, época em que ainda vivia na barroca Sibiu, capital do extinto Principado da Transilvânia. A obra foi concebida em meio às crises de insônia que atormentariam o autor até seus últimos dias em junho de 1995. Quando era assaltado pelo que ele descrevia como “esse nada sem tréguas” ou “essa criminosa falta de esquecimento”, punha-se a vagar madrugada adentro, período no qual as ruas históricas de Sibiu eram frequentadas apenas pelas prostitutas que, segundo Cioran, eram alçadas à condição de “companheiras ideais nesses momentos de suprema angústia”.

O caminhar foi uma solução que o escritor encontrou para impedir que a insônia o enlouquecesse. Conforme escreveu no prefácio da obra: “O caminhar, por sua vez, impede-nos de moer e remoer perguntas sem resposta, ao passo que na cama ruminamos o insolúvel até à vertigem”. Apesar de salutar, movimentar-se não era o bastante para lidar com a “interminável rejeição do pensamento pelo pensamento”, havia um ato de libertação interior muito mais potente e eficaz: a escrita. E foi por meio desse gesto consciente que o autor nos legou um clássico do pessimismo filosófico, ao mesmo tempo em que se libertou da ideia do suicídio, frequentemente sugerida pela insônia. Assim, ele conclui no prefácio do livro que “se não o tivesse escrito, teria certamente posto um fim às minhas noites”.

Essa, aliás, constitui a “força inspiradora” de todos os livros de Cioran, o que elucidaria a aparente contradição entre seu comportamento alegre, educado e elegante na vida privada e o teor desesperançoso de seus escritos. Nessa toada, de acordo com Simone Boué, sua mulher, ele a teria confidenciado que “se meus livros são sinistros, é porque eu me ponho a escrever quando tenho vontade de meter uma bala na pele”.

Ao longo do relativamente curto “Nos Cumes do Desespero”, Cioran toca em diversos assuntos e problemas filosóficos: a expressão lírica, Deus, a beleza, a compaixão, o corpo, a insônia e assim por diante. Entretanto, sua perspectiva sempre é a mesma, porque, na verdade, seu assunto sempre é apenas um (embora explorado de formas diferentes em cada um de seus livros): a recusa do nascimento — “a morte, eu aceito, a vida, eu aceito, mas não o nascimento”, ele dizia.

Na obra, de forma ainda que um tanto implícita, essa ideia aparece. Nesse horizonte, logo nas primeiras páginas do volume, o filósofo constata, não sem um modo de se expressar repleto de lirismo — típico de um homem que passou a vida escrevendo aforismos de alto valor literário —, o absurdo da vida: “A vida cria a plenitude e o vazio, a exuberância e a depressão; o que somos nós diante da vertigem que nos consome até o absurdo? (…) As chamas da vida ardem num forno de onde calor não pode escapar”.

Emil Cioran
Nos Cumes do Desespero, de Emil Cioran (Editora Hedra, 154 páginas)

Diante dessa percepção, o filósofo advoga por uma vida fechada em si mesma, sem aspirações de qualquer sorte — que parece se assemelhar em muito com o modo de existência dos ascetas e dos místicos: “Por que é que não podemos viver fechados em nós mesmos? Porque é que perseguimos a expressão e a forma, procurando esvaziarmo-nos de qualquer conteúdo, organizar um processo caótico e rebelde? Não seria mais fecundo abandonarmo-nos à nossa fluidez interior, sem preocupação de objetivação, limitando-nos a desfrutar de todas as nossas ebulições, de todas as nossas inquietações íntimas?”. E prossegue: “Ignoro por completo por que razão temos de fazer alguma coisa nesta terra, porque é que temos de fazer amigos e aspirações, esperanças e sonhos. Não seria mil vezes preferível retirarmo-nos do mundo, para longe de tudo o que provoca o seu tumulto e as suas complicações? Renunciaríamos assim à cultura e às ambições, perderíamos tudo sem nada obter em troca. Mas o que é que podemos obter neste mundo?”.

A desesperança é expressa de tal forma em certas passagens que certamente pode ajudar alguns corações a se libertarem do peso das pressões cotidianas. Dizendo de outra forma, a obra provavelmente não é a melhor escolha de presente para o seu amigo depressivo, mas tem o potencial de ajudar uma porção de trágicos a se conscientizarem da própria insignificância.

Assim, por exemplo, ao investigar a falta de importância da vida, o filósofo escreve o seguinte: “Que importa que me atormente, que sofra ou que pense? A minha presença no mundo não fará mais do que agitar, para meu grande pesar, algumas existências tranquilas e perturbar — para meu pesar ainda maior — a doce inconsciência de algumas outras. Ainda que eu sinta a minha própria tragédia como a mais grave da história — mais grave mesmo do que a queda de impérios ou não sei que desmoronamento no fundo de uma mina —, tenho o sentimento implícito da minha nulidade e da minha insignificância”. E apesar dessa cruel falta de sentido, Cioran não vê o suicídio como uma saída: “Embora a vida seja para mim um suplício, não posso renunciar a ela, pois não acredito no absoluto dos valores em nome dos quais me sacrificaria”.

Em uma perspectiva que lembra muito o budismo, grande parte do suplício que o filósofo descreve como a vida adviria do fato de pensarmos demais: “Só são felizes aqueles que nunca pensam, ou, dito de outra forma, aqueles que pensam o estritamente necessário para viver. O verdadeiro pensamento assemelha-se a um demônio que turva as fontes da vida, ou então a uma doença que afeta as próprias raízes”. E, mais adiante, resume: “Os homens mais infelizes são aqueles que não têm direito à inconsciência”. Partindo dessas passagens, parece-nos lícito deduzir que o autor de “O inconveniente de ter nascido” enxerga na geração de vida o começo de um martírio infinito, porque ela representaria a ruptura do estado primordial de inconsciência.

Engana-se quem interpretar esse urro que é “Nos Cumes do Desespero” como um mero excesso juvenil de “alguém que ainda não experimentou a vida”. Cioran manteve-se fiel à sua mensagem de desesperança até seu último suspiro. Continuou tratando de seu tema favorito em muitos outros livros que se seguiram: “Breviário de Decomposição” (1949), “Silogismos da Amargura” (1952), “A Tentação de Existir” (1956), dentre outros. E apesar de receber prêmios literários, jamais os buscou. Nunca trabalhou um dia sequer e viveu uma vida pobre em quartos de hotéis baratos, alimentando-se no refeitório da Sorbonne graças a uma carteirinha de estudante falsificada.

Não obstante, ele sempre teve a pretensão de ser lido e por isso se submetia a ser humilhado na editora de Claude Gallimard, onde, nas palavras do filósofo, “ele se sentava como uma puta que ninguém leva para o quarto e que não ousa cruzar o olhar do patrão do bordel”. Em Paris, passou grande parte da vida como um desconhecido, experimentando algum reconhecimento apenas em seus últimos anos.

A resistência do público europeu com seus escritos era tamanha que muitos críticos recusavam chamá-lo de “filósofo”. Talvez a recepção tivesse sido outra se tivesse escrito para audiências não ocidentais, mais acostumadas com a ideia de negação da vida. Quem sabe se em algum rincão da Índia ou do Sudeste Asiático não o teriam descrito como “um Buda que recusou traçar o caminho da libertação”?

Seja como for, nos dias de hoje, o nome “Cioran” está consagrado como o de um filósofo de fôlego, cuja obra é constantemente objeto de estudos especializados e encontra muitos admiradores. Por exemplo, em 2011, um empresário romeno arrecadou em um leilão os diários do filósofo — que passou a vida contando moedas — por 405 mil euros.

Embora escrito durante a juventude do autor, “Nos Cumes do Desespero” resume bem o seu pensamento e constitui, com toda certeza, uma excelente porta de entrada para suas ideias. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Hedra, em 2012, com edição de Bruno Costa e tradução direta do romeno de Fernando Klabin.