E o meu coração não se transformou numa Venezuela

E o meu coração não se transformou numa Venezuela

Nesse final de ano, a sensação é de alívio. O meu coração não se transformou numa Venezuela. O amor continua democrático: só não ama quem não quer. Além de saúde para suportar as agruras futuras, o que espero realmente para o ano que se inicia é um bocado mais de entendimento. Nada extraordinário, do tipo esperar que Vladimir Putin retire o seu time de campo e se desculpe por ter cometido um erro de avaliação ao invadir o território ucraniano. Muito menos, algo impensável quanto supor que a paz finalmente vigorará entre israelenses e palestinos, decorridos tanto tempo de batalhas e de mortandade.

Moro num país tropical, avacalhado por Deus, pero, livre de vulcões e de terremotos, onde o maior risco cataclísmico que se corre é ser acometido por tsunamis de amargura e estiagens de empatia. Uma tia viajou para Minas com desculpas de não se envolver em conflitos familiares durante o Natal, catalisados pela exacerbada polarização política dos últimos anos. A velhota extremista, pasmem, amainou o radicalismo, presenteando-me com um queijo da Serra da Canastra e um sorriso canastrão no rosto: “Apesar de tudo, feliz ano novo”.

Estou envelhecendo. Que obviedade. Os meus sonhos estão ficando velhos, caducos, irritadiços. Nem por isso me permito empedernir. No meio do caminho tem os meus olhos, tem a sanha da poesia assanhando os sentimentos de dentro. Realmente, não me importa que o mercado financeiro reaja bem ou reaja mal às medidas governamentais, que a bolsa de valores bata recordes históricos para investidores histéricos sem grande estofo humanitário ou que o risco-Brasil continue a cair de acordo com as previsões dos países ricos. Não corro o risco de ganhar mais dinheiro. Tenho tudo o que eu preciso, a não ser, a desejada paz de espírito, que é de uma imprecisão cirúrgica indescritível. Levo uma vida confortável, uma aflição interior difícil de se explicar por meio de planilhas, gráficos, relatórios ou equações matemáticas.

Só as rimas me definem. Sou doutor em poesia, um vate das ciências biológicas. Dois e dois quase nunca são quatro. Viver é o cúmulo da imperfeição. Entendo perfeitamente a onda alvissareira que coaduna com as previsões otimistas de uma economia nacional mais promissora nos próximos meses. É fato que, sem dinheiro, não se constrói uma nação. Sem noção de solidariedade e de justiça social, não se combate a pobreza e a desigualdade.

Já tive maior e melhor fome de amar. Descubro, contudo, que o peito se tornou um saco sem fundo. Fundamentalmente, para o ano que se inicia, espero das pessoas esforços de harmonia. Domar a malquerença será, por si só, um resgate do humanismo. O sol, o mar, a terra, a chuva sóbria que cai sobre os campos e as cidades estão otimistas à espera de seres humanos com convicções político-religiosas mais suaves, do tipo acarinhar um ateu, feito um bichinho. De radical mesmo, amar.

Resgatar a tolerância mútua já será uma grande coisa; “descoisificar” o outro, um gesto de inestimável boa vontade. Se eu fosse do ramo, eu juro que eu rezava. Mas, eu não rezo. Só me restam a torcida inveterada, os esforços pessoais sinceros, hercúleos, como essa escrita crua e rascante, por exemplo. A má palavra que se disse está dita. Oxalá, as pessoas reúnam sapiência o bastante sangrar até o fim o rancor, para superar as óbvias diferenças de visão do mundo, para quebrantar as cápsulas de frieza, que são as minhas, que são as nossas, que são aquelas dos amigos achegados e dos que se apartaram também, dos parentes acometidos pela dificuldade adquirida de compartilhar um mínimo de paz e de boa convivência, a fim de tocarmos a vida em frente, tocados, enfim, pelo sopro sincero da gentileza, refeitos no suave frescor de um ano que se inicia. Saúde, paz e bem, até mesmo, para os que não me querem bem.