Ganhador de 3 estatuetas do Oscar, filme com Denzel Washington na Netflix é uma verdadeira joia do cinema Divulgação / TriStar Pictures

Ganhador de 3 estatuetas do Oscar, filme com Denzel Washington na Netflix é uma verdadeira joia do cinema

Periodicamente, fatos históricos tornam-se alvo do escrutínio público de pesquisadores e artistas quando dúvidas até então relegadas ao silêncio quase eterno do passado vêm a lume. Com “Tempo de Glória”, Edward Zwick ajuda a corrigir dados equivocados e as inferências que deles florescem a respeito de uma quadra nebulosa da história dos Estados Unidos, desconhecida inclusive por muitos de seus cidadãos. O recorte da Guerra Civil Americana (1861-1865) sustentado pelo diretor evidencia, claro, o rebuliço institucional motivado pela discordância quanto a se preservar ou não o regime escravocrata; não obstante, Zwick aprofunda-se numa questão bem específica. A participação de soldados negros no conflito ainda é vista como pouco mais que uma anedota — e o filme foi lançado em 1989! —, e, por conseguinte, os grandes personagens que deram a vida não só pela libertação dos escravizados como pela instituição da luta dos afro-americanos por justiça social e igualdade de direitos, que se estende até os nossos dias, amargam um duro ostracismo póstumo.

Na introdução, a câmera avança sobre os precários alojamentos dos soldados em Antietam Creek, Maryland, no nordeste americano, e os enquadramentos sempre muito arejados de que o diretor faz uso deixam que o público se aproxime o quanto pode da história. Por outro lado, o roteiro de Kevin Jarre, cheio de guinadas, dedica-se em boa parte a enaltecer o vulto de um homem branco, escolha que, por mais acertada que venha a ser, provoca queixas justas. Comandante do 54º Regimento, um pelotão formado apenas por negros, Robert Gould Shaw (1837-1963) reveste-se da aura imortal dos grandes heróis — ao menos no começo da história. O jovem coronel vivido com arrojo por Matthew Broderick levanta dos mortos exaltando a coragem e o espírito humanista de Abraham Lincoln (1809-1865), que passou à história como outro branco visceralmente imbuído da libertação dos homens e mulheres negros da América. Em se levando em conta a pletora de informações a fervilhar no texto de Jarre, os 122 minutos de projeção até parecem um milagre — deveriam ser ao menos o dobro. Zwick encaminha seu filme para o argumento central dando passagem à figura mitológica de Frederick Douglass (1818-1895), considerado o pai do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e Thomas Searles (1836-1863), sobre cuja veracidade histórica não se pode cravar nada de muito sólido. As aparições de Searles, a encarnação do negro culto, politizado e lhano nos modos, são um dos pontos altos de “Tempo de Glória”. Defendido — e esse é um termo que cabe à perfeição aqui — por Andre Braugher, Searles resta desperdiçado, apenas prestando-se a um gancho para que se chegue a outras lideranças do exército de Shaw, que chegou a contar com 180 mil homens. Mas aqui inconsonâncias de ordem dramatúrgica ganham vulto.

Um dos melhores atores de seu tempo, a performance de Denzel Washington como Trip é decerto das boas constatações de “Tempo de Glória”, mas não a ponto de lhe ter valido o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Com menos tempo de tela que o tipo interpretado por Braugher, o escravo fugido, arrogante e violento de Washington só brilha mesmo em dado ponto, entre o segundo e o terceiro ato, quando Searles já voava em céu de brigadeiro. Pensar em tamanha injustiça, sobretudo num filme com essa temática, tira-me um pouco a graça do enredo, e tanto mais se se levar em conta também o desempenho de Morgan Freeman como John Rawlins, homônimo do ex-secretário de Guerra dos Estados Unidos, espécie de entidade que guia a conduta daqueles jovens impetuosos além da medida. O empenho de homens como Braugher, Trip, Shaw e Rawlins, nessa ordem, não foi o bastante para evitar a carnificina que se abate sobre o 54º em 18 de julho de 1863. Assim mesmo, historiadores reconhecem nessa derrota o começo do fim da escravidão em território americano, que, como aqui, se deu muito depois da proclamação da Independência.


Filme: Tempo de Glória
Direção: Edward Zwick
Ano: 1989
Gêneros: Drama/Guerra
Nota: 9/10