A receita para o filme de ação perfeito existe e ele está na Netflix Divulgação / Summit Entertainment

A receita para o filme de ação perfeito existe e ele está na Netflix

“Dupla Explosiva” é um maravilhoso caos. Se porventura alguém pudesse levar à tela um filme que juntasse o melhor das cenas de perseguição a um humor espontâneo, sem muita firula, pueril até, acrescendo também algum romance torto, em que amantes se querem bem, mas não são capazes de transpor as monumentais barreiras da vida e consumar seu amor — pelo menos não até que os créditos finais se aproximem —, o resultado seria muito semelhante ao que Patrick Hughes apresenta neste trabalho, que, por paradoxal que soe, não deixa nenhuma ponta solta. Muito experiente nesse gênero de thriller meio nonsense, meio gonzo (e totalmente escrachado), o diretor recicla muito dos elementos usados a contento em “Os Mercenários 3” (2014) e recuperados uma vez mais em “O Homem de Toronto” (2022), chegando assim a um enredo veloz, cativante, sem a menor obrigação com a lógica ou sequer com a verossimilhança. O roteiro de Tom O’Connor vai fixando essa ideia na cabeça de quem assiste de modo orgânico, e quando o espectador dá por si, já está cercado.

A vida perfeita de um homem decerto se compõe de dias que manhãs que rompem a aurora com um relógio suíço na cabeceira do leito desarrumado, ao lado de um porta-retrato com a foto da mulher. Então, ele pinça um terno bem-cortado do imenso guarda-roupa, arruma-se com esmero, admira a vista para o jardim ornamentado com cerejeiras e mognos enquanto o expresso não sai da cafeteira industrial e, cumpridas essas etapas, afinal, apanha a chave do Porsche, beija a mulher que ainda dorme e corre para o trabalho. Antes, um plano geral capta a fachada da casa, suntuosa, de vidro e concreto armado, onde Michael Bryce mora com a mulher, Amelia Roussel. Bryce, o agente secreto triplo A vivido por Ryan Reynolds, não sabe, mas está prestes a ver ruir seu império, por causa de um erro tolo sobre o qual Hughes insiste em fazer mistério, mas que pode ter relação com o estresse próprio de seu ofício, desmesura de autoconfiança ou, quem sabe, algum transtorno do espectro autista por ser diagnosticado com precisão. Passados dois anos, a fisionomia de Reynolds comprova as suspeitas do público quanto ao que lhe iria ocorrer: agora, é pouco mais que um segurança de luxo, dirige um carro popular, está separado de Amelia, de Élodie Yung — que como vai-se ver, também é uma espiã e permanece firme na carreira — e não tem mais muitas expectativas acerca de nada. Essa virada brusca em seu status pode ser revertida a depender de como se saia numa missão tão inusitada como nobre: garantir a sobrevivência de Darius Kincaid, um outro agente, também caído em desgraça, durante seu traslado de Londres para a Holanda, onde ele vai testemunhar contra Vladislav Dukhovich, o ex-ditador da Bielorrússia, no Tribunal Penal Internacional, o TPI. 

Desse ponto até o encerramento, o longa assume de vez o frenesi de cenas de automóveis se enfileirando em vielas da capital inglesa e de Amsterdã, onde “Dupla Explosiva” também foi rodado, em fugas tão milimetricamente calculadas que parecem fruto de computação gráfica, tudo muito similar ao que Christopher McQuarrie fez no ano seguinte em “Missão: Impossível – Efeito Fallout” (2018) — no caso da produção dirigida por de McQuarrie, foi tudo no braço de Tom Cruise mesmo. As tiradas espirituosas (e às vezes francamente obscenas) de Kincaid, com Samuel L. Jackson num de seus papéis, servem de eficaz respiro cômico e, surpreendentemente, a narrativa torna-se mais acelerada nos lances em que o anti-herói de Jackson surge, dependendo da boa vontade de Bryce em algum grau. Como não soa espantoso para ninguém, Kincaid monopoliza as atenções em diversas quadras da narrativa, ajudado pela trilha sonora de Atli Örvarsson, que solta o que lembra uma variação do tema de “007” numa das entradas de Jackson, além de “Hello” (1983), de Lionel Richie, elaborando a deixa irrepreensível para o que acontece nos derradeiros minutos. Na pele de Sonia, Salma Hayek arremata com a dose cirúrgica de romance, bem como Gary Oldman ao dar vida ao tirano do Leste Europeu, em fragmentos breves na Corte de Haia.

Além da louvável despretensão, a grande marca de “Dupla Explosiva” é versatilidade de seu elenco. Ao passo que Reynolds supera as expectativas, Jackson e Oldman, nessa ordem, vão bem mais longe do que se pensava em atuações que tinham tudo para serem definidas por limites rígidos demais. Uma vez que transcendem o clichê, a história vira o relato quase inclassificável de dois homens em busca de absolvição, usando suas habilidades de jeitos diametralmente opostos. Logo, apenas um a merece.


Filme: Dupla Explosiva
Direção: Patrick Hughes
Ano: 2017
Gêneros: Ação/Comédia
Nota: 8/10