O eterno retorno de Michel Houellebecq

O eterno retorno de Michel Houellebecq

Sempre que abro um livro de Michel Houellebecq, tenho a impressão de encontrar a mesma história. É um protagonista masculino solitário que, consciente do absurdo que é estar vivo, experimenta uma existência repleta de melancolia e desgosto.

No mês passado, li “Extensão do Domínio da Luta”, que não foge à regra. Foi publicado em 1997, um ano antes do autor explodir mundialmente com “Partículas Elementares”. É um romance curto, cujo protagonista é o próprio escritor, que o classifica como “um aprendizado do desgosto”. Não há um enredo lá muito linear. É mais uma sequência de cenas da vida de um homem ressentido pelo que o mundo se tornou. Ele tem um emprego bom e uma vida confortável, mesmo assim — não sem uma fina ironia — enxerga criticamente a realidade que o cerca: os avanços do neoliberalismo, a revolução sexual, a massificação do indivíduo, a psicanálise…

O argumento central é que, por um lado, a economia capitalista neoliberal faz as pessoas se matarem por um emprego — não há uma posição para todo mundo —; por outro, a revolução sexual enterrou, em grande medida, os casamentos que aconteciam por pura pressão familiar. Nem todo mundo vai encontrar um parceiro sexual, é mais uma luta para o indivíduo. A vida em si, já é uma luta, e esses fatores estenderam o domínio dessa luta para o campo econômico e para o campo sexual. E por aí vai.

Extensão do Domínio da Luta
Extensão do Domínio da Luta, de Michel Houellebecq (Alfaguara, 142 páginas)

Mas “Extensão do Domínio da Luta” é só um exemplo. Dentro dessa estrutura, o escritor francês explora uma infinidade de temas: o totalitarismo islâmico em “Submissão”, o mercado da arte e a eutanásia em “O Mapa e o Território”, a imprevisibilidade da morte em “Aniquilar” etc. E como bom polemista, aproveita para destilar todo o seu pessimismo e ironia contra a pós-modernidade. Apesar de tudo, Houellebecq não se considera um reacionário – pelo menos não um disposto a fazer alguma coisa. Em entrevista ao “The Paris Review” (The Art of Fiction n° 206), perguntado sobre o propósito de um romance, respondeu: “O que penso, fundamentalmente, é que não se pode fazer nada em relação às grandes mudanças sociais. Pode ser lamentável que a unidade familiar esteja desaparecendo. Você poderia argumentar que isso aumenta o sofrimento humano. Mas lamentável ou não, não há nada que possamos fazer. Essa é a diferença entre mim e um reacionário. Não tenho nenhum interesse em voltar no tempo porque não acredito que isso possa ser feito. Você só pode observar e descrever”.

Voltando ao que eu dizia no início, esse sucessivo autoplágio não me decepciona. Já sei, em linhas gerais, o que vou encontrar nos seus romances. E, mesmo assim, vou continuar comprando a cada lançamento — sei que vou me chocar e me divertir —, porque o que me interessa não é tanto a inovação literária, mas o próprio escritor. Houellebecq teve a capacidade de se transformar, em vida, num fenômeno cultural, numa figura interessante e excêntrica que fala através dos seus personagens. Seus romances são ecos de sua vida absurda. Quase qualquer aparição que faz na mídia ou no cinema é entretenimento garantido.

E por falar em aparição no cinema, quero dizer algumas palavras sobre a mais recente polêmica em que se meteu o autor de “Partículas Elementares”. Imaginem a cena: Houellebecq está de pijama (algodão egípcio, provavelmente) deitado sobre a cama de um hotel em Amsterdã. Fuma e ri, parece genuinamente feliz. Ao seu lado, uma loira de camisola, uns quarenta anos mais jovem, sorri sem parar enquanto mexe no cabelo. O escritor se despe e os dois começam a se beijar. A voz ao fundo do diretor holandês explica tudo: Houellebecq e sua esposa planejavam uma viagem para o Marrocos. Ela cuidara de tudo, inclusive, já tinha arranjado várias prostitutas para o marido aproveitar bem a viagem. Mas algo deu errado. Um grupo de jihadistas ameaçou sequestrar o escritor francês — não esqueceram da publicação de “Submissão”, romance considerado por parte da crítica como islamofóbico, em 2015 — e ele acabou desistindo de pisar no Marrocos. “Comovido com a situação”, o cineasta holandês lhe fez uma proposta inusitada: prometeu arranjar várias mulheres que aceitariam ter relações sexuais com ele por pura curiosidade — não precisaria se preocupar com hospedagem e despesas em Amsterdã, tudo seria coberto —; em troca, teria que permitir que a coisa toda fosse gravada para um filme. Houellebecq aparentemente aceitou.

A descrição é do trailer — retirado do ar — do filme “KIRAC Ep.27 ft. Houellebecq” (“KIRAC” é a sigla do coletivo de arte holandês “Keeping It Real Art Critics”). O filme tinha previsão para 11 de março de 2023, mas teve o lançamento barrado depois que Houellebecq acionou a justiça holandesa, alegando que estava bêbado e lutando contra uma depressão severa ao assinar o contrato com a produtora. No dia 28 de março, numa reviravolta, a justiça permitiu que o curta fosse lançado, fundamentando a decisão no fato de que o autor não conseguiu comprovar o problema de saúde para anular o contrato. A data de estreia ainda não foi divulgada pelo coletivo.

O episódio rendeu o lançamento de um novo livro do escritor francês: “Quelques Mois Dans Ma Vie: Octobre 2022 — Mars 2023” (“Alguns Meses da Minha Vida: Outubro 2022 — Março 2023”). É um relato autobiográfico em que Houellebecq aproveita para revisitar algumas polêmicas que se envolveu nesses seis meses, para além do filme. Em especial, pede desculpas para a comunidade muçulmana da França por seus comentários durante uma entrevista ao “Front Populaire”. Na ocasião, relacionou a imigração de muçulmanos com o aumento da criminalidade, insinuando que isso acarretaria ataques violentos por parte dos franceses, algo que descreveu como “Bataclan à l’envers” (Bataclan invertido).

Michel Houellebecq
Michel Houellebecq: como Sísifo, seus protagonistas vivem um eterno retorno

Houellebecq aprendeu ao longo das décadas — assim como o provinciano anti-herói balzaquiano, Lucien de Rubempré — que a polêmica é um excelente meio para vender livros. Quem domina a arte de capitalizar uma polêmica garante — e muito bem — o leite das crianças e o pão de cada dia. Para nossa sorte, Houellebecq faz isso acompanhado de um talento literário notável. Quero dizer, quem abre “Serotonina” ou “Aniquilar” vai encontrar muito mais do que uma polêmica, há uma universalidade nos seus anti-heróis que nos faz enxergar na melancolia que sentem em relação à vida a nossa própria — é mesmo Literatura e não um tabloide. Feitas essas considerações, deixo no ar a questão: Houellebecq realmente estava incapacitado de assinar aquele contrato, ou o fez sabendo que isso colocaria seu nome em evidência e ajudaria a vender seu futuro livro?

Seja como for, Michel Houellebecq — repito — acabou se transformando no seu melhor personagem. E digo mais, ele — assim como os protagonistas solitários de seus romances — não está muito longe da categoria de “l’homme absurde” (o homem absurdo). Quem quer que tenha lido com atenção o ensaio filosófico de Albert Camus, “O Mito de Sísifo”, vai notar a semelhança. Nesse trabalho, escrito na França ocupada pelos nazistas, o ensaísta franco-argelino desenvolve a ideia da “absurdidade”, um sentimento desolador que nasce do confronto “entre um estado de fato e uma certa realidade, entre uma ação e o mundo que a ultrapassa”. E é um confronto (também poderíamos chamá-lo de “desilusão” ou “desencantamento”) que chega para todos nós em algum momento da vida, sem aviso prévio. Nas palavras de Camus: “Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoçar, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia surge o ‘por quê?’ e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro”.

O homem absurdo, então, seria o sujeito que enfrenta esse confronto conscientemente, sem a necessidade de recorrer a um “salto”, isto é, a um deus — aqui, Camus se afasta de filósofos existencialistas como Kierkegaard, para quem deus representaria a própria absurdidade — e, sobretudo, o faz sem nenhuma esperança. É, assim, um homem que experimenta o que esta vida tem a oferecer, sabendo, desde o princípio, que ela é uma causa perdida.

Camus exemplifica o conceito com a história de Sísifo. A figura mitológica foi condenada pelos deuses a rolar uma pedra até o cume de uma montanha. Já no topo, devido ao peso, ela sempre desaba. E o pobre coitado do Sísifo é obrigado a rolá-la novamente “ad eternum”. É um trabalho inútil e sem esperança, assim como seria a condição humana. O mais interessante é que Sísifo é consciente. Ele sabe que a pedra vai despencar morro abaixo — não tem esperança de que o tormento vá acabar — e mesmo assim continua sua vida, não estoura os miolos. Camus vai mais longe e nos convida a imaginar que Sísifo, em certos momentos dessa sequência de atos sem nexo que constituem o seu destino, sente alegria. Mas o que quero destacar aqui é a ideia de eterno retorno.

Como Sísifo, Houellebecq e seus protagonistas vivem esse eterno retorno. Em cada romance, é sempre a mesma pedra rumo ao cimo que desaba novamente. É sempre o mesmo homem egocêntrico e melancólico, cuja única certeza é a morte. Continua vivendo, apesar de tudo. Talvez o pessimismo dos personagens os impeça de se transformarem por completo no “herói absurdo”, tal como concebido por Camus — no ensaio, ele dá o exemplo de Don Juan —, mas esse potencial sempre parece estar presente. 

No Ocidente secular, em que muita gente busca regras para a vida, um refúgio em meio ao caos, o escritor francês não tenta nos vender esperanças baratas e nem tem a pretensão de nos ensinar alguma coisa. Ele apenas descreve o absurdo da existência e coloca algumas polêmicas no meio do caminho para garantir as capas dos jornais.