Um marco do cinema argentino, obra premiada mundialmente está na Netflix Divulgação / Matanza Cine

Um marco do cinema argentino, obra premiada mundialmente está na Netflix

A vida força-nos a tomar caminhos nos quais não nos reconhecemos, e uma vez que essa senda meio torta abre-se para nós e enveredamos por ela, ninguém é capaz de prever onde ou como iremos terminar. Pode-se inferir que um ex-baixista de conjunto de rock dos anos 1970 que na meia-idade passa a ganhar a vida como operador de máquinas pesadas não tem mais nenhuma grande esperança quanto ao que será de si, mas o carismático protagonista de “Mundo Grua” vence sua própria desilusão valendo-se de um material com que só ele mesmo pode lidar, esperando e esperando que tudo melhore, ainda que saiba que, em tudo se mantendo igual, deverá continuar a viver, como se nada tivesse havido. Um dos mais talentosos e sensíveis cineastas argentinos, Pablo Trapero começa uma louvável trajetória na direção de trabalhos de assumido cunho social, mas que nunca resvalam na agitprop, tendendo, muito antes, ao neorrealismo de gênios como o Vittorio de Sica (1901-1974) de “Ladrões de Bicicleta” (1974), ou Federico Fellini (1920-1993), com “A Estrada da Vida” (1954), nessa ordem, misturando a dor real, a angústia da incerteza e das privações — malgrado esse anti-herói não corra qualquer risco iminente de morrer de fome — ao circense, ao patético de se viver. No fundo, essas duas forças se nutrem do mesmo manancial.

Um imenso guindaste disputa espaço com o céu na abertura do roteiro do diretor, uma imagem recorrente ao longo da sóbria hora e meia de exibição, tanto mais austera com a bem-cuidada fotografia em preto e branco de Cobi Migliora. Trapero vai recheando a história, sobretudo nesse cinzento primeiro ato, dos lances que posicionam o espectador na corda bamba que aguarda por Rulo, o roliço operário de Luis Margani. A câmera desliza por uma Buenos Aires que só os pedreiros e seus assistentes conhecem, destacando em closes aéreos o terraço de edifícios quase todos alvos e uma estrutura de ferro em contra-plongée. Margani toma posse do filme com método, revelando a tragicomicidade de Rulo em diálogos a exemplo do que mantém com o maquinista mais experiente, que dá mesmo a impressão de sentir-se um pássaro isolado a noventa metros do solo, mas na gaiola, admirando a beleza da metrópole ao longe enquanto atenta para a precisão de cada manobra. No intervalo, ele se dirige ao bar de Adriana, a solteirona de Adriana Aizemberg, compra uma milanesa, joga um pouco de conversa fora, e imagina que seus dias na pele do pai solteiro de Claudio, de Federico Esquerro, estão contados.

Trapero reserva boa parte do filme a fim de elaborar o universo íntimo de seu personagem central, que parece sempre plano demais nesse aspecto, um dos raros deslizes de “Mundo Grua”. Um outro trabalho, num lugar incerto a dois mil quilômetros ao sul, na Patagônia, implica na separação de Adriana, quando a narrativa ganha o tom muito mais lúgubre que a conduz para uma conclusão tão dúbia quanto poética.


Filme: Mundo Grua
Direção: Pablo Trapero
Ano: 1999
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.