Os momentos verdadeiramente nobres da vida parecem exalar uma fragrância única, inconfundível, que se vai misturando aos ambientes como música, deixando no ar um rastro de mistério, de beleza e de eternidade. Em “Perfume — A História de um Assassino”, Tom Tykwer consegue a proeza de elaborar um filme tão sinistro como absorvente — com bem menos do preciosismo do enredo original —, dando, por óbvio, todo o relevo às imagens, encadeadas de modo a compor fases pontuais da vida de alguém à beira de sucessivos colapsos. É nítido o empenho de Tykwer quanto a revelar cada mistério a seu tempo, conservando a aura noir do romance publicado pelo alemão Patrick Süskind em 1985; por outro lado, o diretor conta com algumas ideias anômalas de seu roteiro, escrito com a ajuda de Andrew Burkin e Bernd Eichinger, para justamente modelar o tipo doentio que dá azo à trama, erigido sobre perversões e um estranho dom.
Na abertura, figurantes presos a grilhões oferecem uma ideia do que era o dia a dia na França do século 18, e a partir daí “Perfume” dá um mergulho mais e mais perturbadoramente detalhado na Paris de 1738, um ano sem nada de especial, mas só até 17 de julho. O parto do quinto filho de uma peixeira, em meio à onipresente imundície da capital francesa seis décadas antes do movimento que defenestrou a monarquia absolutista de Luís 16 (1754-1793), ao mesmo tempo em que realça o caos generalizado em que a Europa estava atolada também principia a listar os elementos com que o diretor marca o intrincado perfil do homem que encabeça o que é contado. A escatologia é um artigo de primeira necessidade, ao menos até que o espectador absorva, quase literalmente, a jornada de Jean-Baptiste Grenouille, uma criatura invulgar, para o bem e para o mal.
O pequeno Jean-Baptiste escapa por pouco de ser deixado na sarjeta, e esse parece o conceito que guia o trabalho de Ben Whishaw pelas duas horas restantes. Whishaw deixa que a vilania de Grenouille aflore muito parcimoniosamente; na verdade, Tykwer cozinha em fogo brando o vigor da natureza diabólica do personagem, que sobrevive a negligência da mãe, mas não consegue desviar de seu fado desditoso e acaba parando no orfanato da madame Gaillard, de Sian Thomas. Franck Lefeuvre incorpora as passagens em que o protagonista surge quase inocente na pele de um garoto travesso, mas muito longe do que virá a ser. A edição de Alexander Berner não dedica muito tempo a dissecar o Grenouille menino; entretanto, seu intérprete na fase adulta tira de letra qualquer obstáculo à coesão da narrativa, valendo-se de colegas igualmente talentosos.
O diretor remete à autodescoberta de Grenouille, que justifica o título, depois de sua passagem pela loja de Giuseppe Baldini, o mestre perfumista de Dustin Hoffman. Agora decadente, só mais um dos doze boticários de Paris, Baldini já foi solicitado por toda a aristocracia europeia e pena com uma velhice entre definida por abandonos e precarizada, rancoroso com o ostracismo e intolerante à superioridade técnica e o êxito de um confrade jovem, responsável pela fórmula de um tal Amor e Psique, cujo segredo ele tenta desvendar a todo custo. Generoso, Hoffman entra e sai de cena com a classe habitual depois de ter seu quinhão de lances memoráveis ao lado de Whishaw. Vencido esse tomo de “Perfume – A História de um Assassino”, Tykwer situa Grenouille no centro do palco outra vez, dando ao longa o andamento preciso para que o monstro rompa o ovo e sofistique sua truculência até que venha o epílogo e tudo quase volte ao que era na introdução, com um Jean-Baptiste angelical feito o lobo depois da caçada.
Filme: Perfume — A História de um Assassino
Direção: Tom Tykwer
Ano: 2006
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 8/10