A história inesquecível e perturbadora da Netflix que tem 99% de avaliações positivas, mas continua desconhecida Divulgação / Netflix

A história inesquecível e perturbadora da Netflix que tem 99% de avaliações positivas, mas continua desconhecida

Quando pensamos que a vida começa a aconchegar-se na doce monotonia de que julgamos ser dignos, ela sempre trata de engendrar-nos as surpresas que nos fascinam ou nos arrasam. Por essas e outras é que a história central de “Diga Quem Sou Eu” consegue ser, a um só tempo, tão familiar, com a licença do trocadilho, e tão exclusivamente pontual. Da mesma forma que a morte cerca o existir, situações de congraçamento e quadras infelizes rondam os lares de mulheres e homens comuns mundo afora; no entanto, o documentário de Ed Perkins fica a um milímetro da ficção ao escarafunchar reminiscências bastante particulares de uma dupla de irmãos gêmeos acerca de uma tragédia que, por óbvio, impacta suas trajetórias e soterra os dois com mudanças indesejadas. E é do meio desses escombros que a história surge.

Uma sala escura, subitamente iluminada, presta-se a uma metáfora da vida de Alex e Marcus Lewis, e o diretor respalda-se justamente de imagens como essas para buscar no fundo da alma dos dois a revelação que estarrece o público, depois de ter preparado o terreno com toda a cautela. Incontinente, vem a lembrança do espectador mais afeto à matéria e ao gênero a lembrança de “Três Estranhos Idênticos” (2018), em que Tim Wardle e Grace Hughes-Hallett vasculham as memórias não de dois, mas de um trio de gêmeos univitelinos, separados no nascimento, reunidos graças a uma manobra inexplicável do destino e, bem como os irmãos da narrativa de Perkins, tem de se haver com detalhes ignominiosos de sua história. A diferença cabal a fazer este trabalho superior ao de Wardle e Hughes-Hallett é a abordagem sempre esmerada em aspectos secundários numa produção dessa natureza. A fotografia de Erik Wilson e Patrick Smith rouba a cena muitas vezes com suas sucessões de chuva descendo sobre uma janela em azuis-petróleo entremeados por pinceladas de negro, conferindo ao resultado final, conscientemente ou não, a rotulagem de um noir sofisticado. Como ali é tudo verdade, tal dispositivo exerce a função dialética de amenizar a catástrofe psicológica de Alex, sobreposta ao acidente de moto que transforma o que entende de si mesmo e dos que integram seus círculos mais íntimos para sempre, mas, por natural, puxa para o filme todo o macabro do que se conhece minutos depois, um fardo demasiado grande para se carregar sozinho.

Do desastre que por pouco não mata Alex, ocorrido em 1982, quando os gêmeos contavam dezoito anos, Perkins salta para 1995, momento em que o diretor descreve a morte de Jill, a mãe deles, e daí para 2019, com o acerto de contas dos dois — que, evidentemente, não pode ser completo porque seu algoz já não vive. Caminhando por esse terreno pantanoso, “Diga Quem Sou Eu” proporciona uma reflexão doída, mas ponderada, sobre culpa e remorso, indignação e clemência, muito necessária para quem a recebe, e ainda mais para quem tem a graça de concedê-la.


Filme: Diga Quem Sou Eu
Direção: Ed Perkins
Ano: 2019
Gêneros: Documentário
Nota: 9/10