Romance que acaba de estrear na Netflix é a história de amor mais deliciosa de 2023 Divulgação / Netflix

Romance que acaba de estrear na Netflix é a história de amor mais deliciosa de 2023

Há um sem-fim de jeitos de se falar sobre os desacertos dos relacionamentos amorosos, e a forma escolhida por Alauda Ruiz de Azúa é valer-se de boa medida de realismo mágico. Os dotes sobrenaturais de um homem, fincados num cartesianismo impossível à vida como ela é — e tanto menos em assuntos sentimentais —, são a metáfora empregada pela diretora para lançar dúvida sobre as conexões que vamos estabelecendo ao longo da vida, e em “Amor ao Primeiro Beijo” elas se mostram cada vez mais decisivas conforme a história toma substância. Vencedora do prêmio Feroz 2023 de Melhor Roteiro e indicada ao Goya de Melhor Novo Diretor e Roteiro Original por “Canção de Ninar” (2022), neste filme Azúa continua a falar dos impedimentos à vida tranquila do gênero humano, que nunca sabe querer e ainda assim quer e sempre faz as escolhas imperfeitas que tão bem o caracterizam.

Na primeira sequência, jovens se encontram no ambiente escuro de uma boate, amenizado pelo vermelho da fotografia de Sergi Gallardo. Javier, o onipresente protagonista de Álvaro Cervantes, compõe um verdadeiro arrazoado sobre beijos e formas de se beijar, porém o roteiro de Adolfo Valor e Cristóbal Garrido trata de desmontar esse donjuanismo do personagem ao explicar ao público a estranhíssima aptidão de que fora dotado por alguma força oculta — mais para diabólica que para divina, uma vez que fica sempre tão perturbado ao se dar conta de que não será feliz com a moça que acabara de conhecer. Um flashback volta a trama cerca de duas décadas, e Javier surge em tenra idade, já bem-sucedido com o sexo oposto, mas ainda sem consciência plena dos superpoderes que se mostrarão completamente inadequados. Javier torna-se um editor e aspirante a agente literário de pretensões modestas, e essa subtrama, explorada em paralelo ao argumento central, é decerto o grande momento do filme. Azúa se estende sobre as desilusões amorosas involuntárias e conscientes de seu anti-herói partindo de suas leituras da vida inteira. Numa passagem que frisa menos o currículo de mulherengo condenado a nunca ter pouso que no desempenho em seu ofício, aparece-lhe Sonsoles Duran, a escritora decadente de Fabia Castro, com quem conversa sobre “Fogo Pálido” (1962), híbrido de poema e ensaio de Vladimir Nabokov (1899-1977), e David Foster Wallace (1962-2008), romancista e infant terrible do jornalismo gonzo nos Estados Unidos na virada do milênio. Mas não será ela a praia que lhe servirá de porto.

A amizade com o personagem de Gorka Otxoa se liquefaz e mesmo a menor chance de ser feliz ganha a natureza de uma doce quimera com a obstinação estúpida em viver de acordo com o que lhe parece vir da razão, mas é puro devaneio. Javier não merece o amor da insistente Lucia vivida por Silvia Alonso, mas o amor, como até a voz rouca das ruas diz, o coração tem razões que a própria razão ignora, faz questão de ignorar e tripudia daquele que ousa alegar que conhece.


Filme: Amor ao Primeiro Beijo
Direção: Alauda Ruiz de Azúa
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10