Selvagem, trágico e surpreendente, novo filme da Netflix tem 100% de avaliações positivas e você não assistiu Divulgação / Netflix

Selvagem, trágico e surpreendente, novo filme da Netflix tem 100% de avaliações positivas e você não assistiu

O mundo é um ambiente vasto demais, plural demais, insensível a quase todos os sonhos a que gente comum se lança com um afinco entre comovente e desesperada, feito um mendigo sobre um prato de sopa numa noite longa de inverno rigoroso. Tentando achar seu espaço em meio ao caos da vida, fonte de toda glória e toda perdição, o homem forja sua natureza indomável na esperança de que esse esforço ajude-o a sufocar as ilusões que sabe impossíveis, quiçá até tresloucadas, rebaixando-se, submetendo-se aos desmandos do estabelecido e de seus donos, ansiando pelo empuxo que, algum dia, permitir-lhe-á chegar à superfície e ver o sol, que nasce para todos, mas distribui seu calor entre uma privilegiada minoria. Em tomando pé de sua inadequação fundamental, ainda em tenra idade, o indivíduo primeiro busca o entendimento — sobre si mesmo, sobre seus receios, suas carências e misérias —, nutrido pela certeza ingênua de que ali reside a explicação de tudo, como se a sabedoria instintiva que existe em cada um houvesse de prestar-se como anteparo nas questões verdadeiramente decisivas que se impõem para quem quer que seja, a despeito de idade, etnia, sangue, cultura, estrato social. Quando se dá conta de que sua extenuante romaria pelo mais secreto e obscuro de seu espírito resta infrutífera, que as tantas autoviolações a que se sujeitara não servem para nada mais que cristalizar sua irrelevância na Terra, deflagra-se o circuito inverso, orientado pela revolta mais cínica e menos civilizada.

O primeiro dia de fevereiro de 2013 seria só mais um ciclo em que a Terra conclui outra de suas intermináveis voltas em torno de si mesma, flutuando em sua invejável placidez, eternamente mergulhada no silêncio oleoso do universo, que por seu turno ri dos pobres-diabos aqui de baixo ganhando a vida sempre com dificuldade, do bilionário exasperado diante de uma eventual queda das ações de seu meganegócio depois do desfalque de um executivo em quem confiava até a semana passada à prostituta que se oferece por um trocado qualquer, manchando de batom vermelho-sangue os copos dos pés-sujos das megalópoles pelo planeta afora. Contudo, para Caleb Lawrence McGillvary seria o início de uma jornada de glória, efêmera, como é toda glória que se pode conseguir nesta vida, prenúncio da espiral descendente de eventos funestos que o colheria para sempre.

Aos 24 anos, Kai, como se apresentou para Jessob Reisbeck, então repórter da Fox em Fresno, Califórnia, despontava para um estrelato suicida, e a metáfora não poderia ser mais apropriada. Reisbeck havia sido designado para cobrir o assassinato de um motorista branco de meia-idade, mais de um metro e oitenta de altura disposto em 140 quilos. Esse homem jogou o carro contra um operário negro que fazia reparos na estrada, depois de se autonomear o messias, aquele que tira o pecado do mundo, encarnado pelo tom escuro em certas peles desditosas, segundo ele. Uma mulher chega para socorrê-lo e é atacada também, mas o agressor não contava com a astúcia de Kai, cuja evidente insânia era a única arma que neutralizaria a cólera lunática do maníaco — junto, claro, com a machadinha que o herói brandia, citada no título deste documentário, bizarro, hipnótico, revoltante e debruçado numa daquelas histórias que só mesmo a vida como ela é tem a coragem de escrever.

Colette Camden lança-se ao desafio de conferir alguma ordem aos acontecimentos, lamentáveis e caóticos, de “O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino?”. Para tanto, a diretora vale-se de entrevistas com os personagens centrais desde conto macabro cuja gravidade o esgoto malcheiroso, oportunista e inconsequente que sedia certa imprensa faz parecer tolo ou até divertido, como se não houvesse gente de carne, osso, sonhos e frustrações envolvida nele. Camden não julgara conveniente socorrer-se do depoimento de psiquiatras forenses, sociólogos, teóricos da comunicação, concentrando-se no que dizem aqueles diretamente imbricados na história; todavia, seu trabalho é nada mais que um registro factual do que Guy Debord (1931-1994) escrevera mais de meio século atrás em “A Sociedade do Espetáculo” (Buhet-Chastel, 1967). Como a humanidade avança uma casa e retrocede dez, demos de cara com o lamaçal em que chafurdou Debord para catar suas pérolas. E com Kai.

Flagrei-me assombrado pela habilidade do texto da diretora-roteirista em manipular as emoções do público, ora atribuindo a Kai virtudes (que ele não tem), e no momento seguinte expor sua personalidade instável, seu temperamento agressivo, a descompensação mental, seja apenas por um comportamento que adota por querer, ainda que não tenha plena capacidade de discernimento sobre a conveniência de seus atos, seja por um desequilíbrio químico de fato, provado nas sequências em que urina em público, primeiro no Hollywood Boulevard, em plena Calçada da Fama, e mais adiante na placa que o anuncia como uma das atrações do programa de Jimmy Kimmel — e essa imagem, queiramos ou não, é não só a síntese do que trata “O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino?” como uma peça de publicidade admirável. Isso posto, não há justificativa para a leviandade de jornalistas como Reisbeck que o encaram como um showman, de que se pode tirar o sumo e atirar fora o bagaço, a exemplo do que se dá trinta vezes por mês ao longo dos anos, com gente normal. McGillvary nunca precisou de celebridade ou fortuna, como admite num de seus de raros lampejos de sanidade. Ele precisava de tratamento, mas em vez disso, recebeu 57 anos de cadeia.

Por que McGillvary foi preso, afinal? O crime foi premeditado? Como defini-lo, um psicopata ou alguém no lugar errado, na hora errada? Também por volta dos vinte e poucos anos, passei por uma das situações que McGillvary descreve, explicação candente para boa parte do monstro que se tornou — não obstante, repita-se, ele seja um assassino e deva pagar por seu crime —, e escapei, com a graça de Deus (é sempre muito arriscado dizer isso hoje em dia…), a quem louvei numa oração muda e sincera. Estava vivo, não havia matado ninguém e me fortaleci. Só Ele sabe o que suporta o coração do homem.


Filme: O Mochileiro Kai: Herói ou Assassino?
Direção: Colette Camden
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Drama
Nota: 10/10