5 filmes na Netflix que todas as pessoas deveriam assistir (ou rever) no primeiro dia do ano Jojo Whilden / Netflix

5 filmes na Netflix que todas as pessoas deveriam assistir (ou rever) no primeiro dia do ano

À medida que nos admitimos donos de fraquezas as mais inexpugnáveis, concentradas em espíritos débeis, tanto mais que a carne, vulneráveis aos pesares tão íntimos de cada um, desajustes sociais, tragédias que aniquilam o que há por fora e por dentro, a indefectível tristeza que margeia e conduz a vida do homem do berço ao túmulo, a uma vasta gama de intempéries, enfim, as metafóricas e aquelas que nunca se pejam de logo subjugar o homem pela força de seus efeitos na vida como ela é, vamos compreendendo, ao tempo e no ritmo que só nós mesmos somos capazes de definir, que o existir, malgrado tão duro muitas vezes, é um grande, um soberbo presente com que nos regala o Altíssimo, o destino, a sorte, ou seja lá que nome se queira dar a essas manifestações, ocultas e tão evidentes, que se fazem perceber a todo instante na jornada do homem neste plano. Só mesmo uma entidade superior, desinteressada das tergiversações morais do gênero humano, concede-lhe a oportunidade de abandonar o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e refazer o percurso, do começo, se necessário, uma vez, duas, cinquenta, mil. Toda graça nasce do amor, e todo amor, por seu turno só pode vir da renúncia, ocasião em que precisamos largar tudo, abandonar os arcaicíssimos hábitos que, de tão arraigados, já nos compõem e nos explicam, e acessar o mais obscuro de nosso espírito, no intuito de apreender o cenário em que estamos nos aprisionando e, assim, verdadeiramente, mudar. A estrada para a perdição é larga, porém sombria; uma vez que o homem envereda por essa senda tenebrosa da existência, surgem mil outros desvios que, por mais retos que possam se mostrar, conduzem-no apenas à desventura e não raro à morte.

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. O pensamento de Heidegger assinala as muitas descobertas que fazemos ao longo do estar no mundo, cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória. A obra de Heidegger — ele mesmo um sujeito que promovia a dúvida ao nobre estado de mãe do pensamento filosófico, parindo muito mais incerteza que a vã segurança que ilude o homem desde sempre — passa por eminentemente melancólica, desesperançada, lúgubre, por dizer as verdades revigorantes que quase ninguém aprecia ouvir, comportamento que se pode acolher em alguma proporção. A vida terrena, curta e rodeada por morte a despeito de pouca idade e boa saúde, m desperta-nos uma irrequietude danosa, fruto do imediatismo diante do tempo, o maior de nossos carrascos. A existência humana para Heidegger é um eterno vir a ser, no qual nada é imediato, tampouco definitivo, e a natureza do homem tem de vigiar sempre, a fim de não se comprometer com os projetos errados, uma vez que perder tempo. Depreende-se da teoria heideggeriana o seguinte paradoxo: o homem nunca é coisa alguma, muito menos feliz. A felicidade para o homem, segundo o filósofo, só se confirma na morte, com a qual ninguém deseja se encontrar.

A ideia de se tirar proveito das 24 horas que cada dia nos oferece perpassa os cinco filmes que selecionamos para outro dos eternos recomeços a que nos submete a vida. O princípio de um novo ano leva-nos, inexoravelmente, a refletir acerca de nossa conduta, nossa relação com o outro, o modo, geralmente superestimado, como nos enxergamos, muito maiores e reivindicando uma importância que não temos. Em “A Mão de Deus” (2021), de Paolo Sorrentino esquadrinha um relato perturbador de suas lembranças de meninice, remetendo ao gênio do Fellini de “Amarcord” (1973); já no adoravelmente cínico “Paddleton” (2019), Alexandre  Lehmann abre uma janela sobre a vida exasperantemente comum de dois amigos, que decidem passar por cima da gravidade da morte próxima de um deles praticando um jogo de regras bastante frouxas. Os cinco títulos, todos na Netflix e apresentados do mais novo para o de estreia mais recente, firmam-se como lances memoráveis do cinema contemporâneo ao promover a reflexão do público e proporcionar-lhe conforto frente às angústias mundanas, decerto as mesmas que hão de se repetir em 2023. Renovemos nossa força. Feliz ano novo, de novo!