Filme tenso e violento, na Netflix, te levará para dentro dele e fará 113 minutos parecerem o resto de sua vida Nick Wall / Netflix

Filme tenso e violento, na Netflix, te levará para dentro dele e fará 113 minutos parecerem o resto de sua vida

As trinta zonas de guerra no mundo hoje, na maioria dos casos de disputas de território provocadas por desavenças religiosas, tentativas de subjugação de uma etnia sobre outra ou a afirmação da soberania acerca de recursos naturais,  provam que a necessidade do homem por reconhecimento, o ímpeto, que não pode controlar, por demonstrar poder sobre seus pares e fazê-lo se cumprir, massacrando populações inteiras de países em humilhante desvantagem sociopolítica, vencem a mais renitente sanha por justiça, única possibilidade de harmonia entre os povos e suas tantas idiossincrasias, suas incontáveis misérias. Negação da política por excelência, o enfrentamento bélico de uma nação contra outra, por óbvio, degringola em questões colaterais que qualquer um seria capaz de prever, mas que acabam convenientemente ignoradas no palco sinistro de batalhas que se arrastam por décadas, as mesmas em que homens exaustos corroboram a descrença fundamental da natureza humana em si mesma, em seu talento para a elaboração intelectual, em sua pretensa superioridade sobre as demais criaturas.

A guerra é, em muitas ocasiões, o último — e único — recurso, mas cobra seu preço. Quase sempre, foi por meio do derramamento de sangue entre forças inimigas que a humanidade viu nascer seus grandes heróis, homens e mulheres que se vestiram da aura de personalidade da história graças a um desempenho de coragem memorável ao longo de uma série interminável de batalhas. A história é feita de personagens que, por absurdo que soe, passam ao largo da atenção — e mesmo do interesse — das gerações que as sucedem, por uma pletora de tristes razões. Não obstante a ignorância quanto ao relevo e ao legado desses vultos, os conhecidos e, principalmente, os sufocados pelas brumas do tempo, que a humanidade consegue respirar um pouco mais aliviada, lembrando o quase nada de avanço civilizatório que vem tornando realidade, às custas do sacrifício de gente comum. O brasileiro Fernando Coimbra situa no Oriente Médio sua argúcia em capturar um lado horrendo do ser humano e “Castelo de Areia” entra para o rol daqueles filmes de guerra que desdenham da emoção óbvia do argumento central e esmeram-se por propor abordagens mais subjetivas da guerra e seus desditosos partícipes.

Em Baquba, a “cidade leal” do ditador iraquiano Saddam Hussein (1937-2006), homens como Matt Ocre lutam não para continuar vivos, mas para manter a sanidade. O soldado vivido por um Nicholas Hoult impressionantemente maduro demonstra a todo instante que vai perder a disputa contra seus próprios pensamentos, mais e mais tomados de uma covardia que qualquer um é capaz de perdoar. Essa frouxidão moral remonta automaticamente no instinto de sobrevivência que parece ter abandonado todos os outros homens que compartilham de sua sorte, a começar pelo capitão Syverson, de Henry Cavill, um daqueles tipos perigosamente arrojados que só a guerra pode produzir. Apesar de uma preocupação comovente com os cães mansos que rondam o acampamento em busca de comida e um pouco de acolhimento, como Aika, a pastor alemão adotada pela tropa como mascote, fica claro que Syverson não hesitaria nem um segundo em se imolar nos altares profanos da política internacional. O capitão se permite enredar por sua vaidade megalomaníaca, que o faz acreditar com toda a convicção de que ele é uma peça fundamental na condução desse espetáculo tenebroso.

Malgrado se arraste em alguns momentos, Coimbra municia “Castelo de Areia” de lances memoráveis, a exemplo da sequência, ainda no primeiro ato, da invasão à casa de Saddam, já depois da defenestração do tirano, quando Ocre, Syverson e os outros se permitem um resgate ligeiro de sua humanidade ao comentar o gosto duvidoso do déspota para decoração e suas preferências cinematográficas — um conforto espiritual de que os combatentes de “Soldado Anônimo” (2005), de Sam Mendes, não usufruem. Mesmo assim, o que se depreende do comportamento desses guerreiros, também varridos pela história, é que poderiam ter sido mais úteis. E que a sede dos iraquianos não é só de água.


Filme: Castelo de Areia
Direção: Fernando Coimbra
Ano: 2017
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 8/10