Distopia paranoica para quem gostou de 1984, de George Orwell, está na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Distopia paranoica para quem gostou de 1984, de George Orwell, está na Netflix

A luta pela sobrevivência impele-nos a assumir uma postura mais agressiva diante dos outros e esse personagem não demora a ser incorporado à nossa natureza, com a providencial ajuda das várias dificuldades que se agigantam nos cenários extremos em que a vida, caprichosa e vingativa, transforma-se num palco tétrico onde se chega para matar ou para morrer. Indivíduos são esbulhados de seu arbítrio e de sua sensibilidade e se convertem num prolongamento da consciência coletiva, não pensam mais pela própria cabeça e veem-se obrigados a se submeter a expedientes os mais vis, não por covardia, mas por não poderem contar com ninguém. O que entendemos por vida remonta, em verdade, a uma ideia de empenho por viver, isto é, a vida nada mais seria que uma sequência de especulações, desgovernadas e avessas a métodos, quanto ao que o homem deseja e furta-se a desejar, num e no outro caso obedecendo a parâmetros muito específicos, flagrantemente confusos, entretanto, plenos de detalhes e de meandros que somente a própria vida os poderia domar — se o quisesse.

Desejamos o que nos parece inestimavelmente distante porque sabemos que as chances de o alcançar são mínimas; acatando o mesmo mecanismo, sufocamos aspirações assustadoramente próximas porque elas não se nos mostram instigantes o suficiente, não nos encantam, não conseguem, enfim, cavar um espaço num cérebro tomado por pensamentos os mais absurdos, rendido pela tirania da ilusão, subjugado pelo desvario mais eloquente, que não se contenta em mostrar-se senhor das humanas vontades e dos desejos mais comezinhos e pulsa e grita e queima, fazendo sofrer aquele que ousa enfrentar seus próprios medos e as neuroses que deles eclodem, como se fossem as larvas de um inseto asqueroso e peçonhento, que não mede esforços para tomar conta de um jardim, seu mundo possível. O homem não sabe querer; no momento mesmo em que manifesta uma vontade qualquer, a natureza humana já principia a semear destruição por toda parte, evidência que aponta para uma conclusão um tanto óbvia: há que se declinar de toda vontade, mormente as que não se furtam a iludir-nos com vãs promessas de felicidade, que, supomos, irão nos conduzir a uma vida melhor — ou, quiçá, menos ordinária.

Só se pode entender “Controle Absoluto”, à luz das grandes narrativas distópicas que foram deixando claras a força e a relevância das ideias que defendiam ao longo do século 20, inspiração cada vez mais óbvia para produções que também ousam emular essa urgência de se tratar de assuntos que passam desapercebidos diante de gente demasiado entretida com suas miudezas. Ora se ocupando de tramas à primeira vista mais amenas, como no recém-lançado “Amor de Redenção” (2022), ora escarafunchando toda a bizarrice de histórias tão insanas quanto verossímeis, D.J. Caruso faz deste filme um tributo muito sutil aos alertas confessadamente hiperbólicos do George Orwell (1903-1950) de “1984” (1949), lembrança constante e mais próxima a cada dia quanto aos expedientes com que os poderosos de turno enredam cidadãos inermes, que se tentam se manter a salvo da fúria das instituições, mas sempre acabam subjugados em suas pequenas liberdades, sem que entendam por quê.

O caos é a regra de ouro no roteiro de Dan McDermott e outros três colaboradores. Com certo desprezo pelo espectador mais contemplativo, para quem cinema é, antes de qualquer outra coisa, admirar imagens, Caruso vai empilhando uma sequência na outra, todas cheias de elementos que poluem o cenário de propósito, tendência que só se agudiza. São muitos carros sendo revirados, muita gente correndo de um para o outro lado, muitos, muitos ruídos, graves e agudos, os intermitentes e o que não param jamais na boa edição de som de Christopher Assells. É em meio a toda a essa algaravia e a todo esse desassossego que o diretor ambienta sua narrativa, centrando-a em Jerry Shaw e Rachel Holloman, os anti-heróis encarnados por Shia LaBeouf e Michelle Monaghan. Os dois não são mais que pessoas pelas quais ninguém se interessa, nem os políticos nem a imprensa, perdidos numa Chicago nem grande nem pequena com seus três milhões de habitantes, mas sempre violenta. Caruso vira a chave no momento em que Jerry e Rachel começam a receber ligações em seus celulares, o que não demora a degringolar em semáforos que ligam e desligam a despeito de como foram programados, guindastes de ferros-velhos autossuficientes e a mudança da rota dos trens. Aos poucos, entra de contrabando uma invasão ao Pentágono, essa, sim, de todo desarrazoada, mas aí já será tarde demais. A maneira como “Controle Absoluto” é conduzido faz-nos crer que somos mesmo só uma minúscula peça num tabuleiro gigantesco, à mercê de movimentos cuja origem jamais poderemos identificar.


Filme: Controle Absoluto
Direção: D.J. Caruso
Ano: 2008
Gêneros: Thriller/Mistério/Ação
Nota: 8/10