Leve, fofo e açucarado, filme com Dakota Johnson que acaba de chegar à Netflix vai acalmar sua alma Divulgação / Focus Features

Leve, fofo e açucarado, filme com Dakota Johnson que acaba de chegar à Netflix vai acalmar sua alma

O cenário artístico tem suas deformações. Na esteira dos grandes talentos que visitam a Terra uma vez a cada dez mil anos, surgem figuras cuja irrelevância acintosa se revela um duro golpe naquela esperança diáfana, gasta, surrada quanto a uma possível salvação do gênero humano. Comprando consciências, dilacerando sonhos no moinho dos enganos vãos que gira com a força invejável das perigosas inutilidades, a indústria cultural não se faz de rogada e tira seu naco de tudo quanto pode, até que reste apenas o osso, e uma vez mais, e outra e de novo. O dito showbiz fabrica seus mitos com o mesmo empenho de que se vale para os destruir, tendo o cuidado de antes dar-lhes a sensação de que, àquela altura, ninguém os arranca do pedestal em que os colocaram. Bobagem grossa: arranhar o firmamento dá a essa gente a ilusão de que são deuses e quanto maior a altura, mais difícil a descida — e mais dolorido o tombo. Malgrado a queda também se constituído num grotesco espetáculo, apreciado por plateias as mais heterogêneas, correspondendo aos anseios da patuleia quanto a “artistas” semelhantes ao povão. Na quase totalidade dos casos, essas pessoas só alongam sua evidência graças a empresários cujo talento para vender gato por lebre beira o gênio; produtores atentos, hábeis em capitalizar o interesse que as massas insistam em ter por sua figura aguadamente exótica e multiplicá-lo pelas tantas vezes que a conjuntura permita; e claro, ao carisma de que possam dispor, predicado misterioso, inexplicável, relacionado às experiências para além do mundo, tanto as divinas como as diabólicas.

A falsa sensação de que as ditas celebridades estão a um clique de nossa vã mortalidade, mas jamais padecendo dos miúdos e grandes tormentos que angustiam mulheres e homens comuns, assalta-nos a todos, ainda que, no fundo, saibamos que males de toda ordem deságuam na vida mesmo desses oráculos da pós-modernidade, que costumam habitar um Olimpo chamado redes sociais, levando-nos a crer que fez água a confluência de mídias enunciada pelo historiador inglês Peter Burke. Nisha Ganatra não vai tão longe, mas seu “A Batida Perfeita” pode ser tomado como um bom prelúdio para que se entenda a debacle das manifestações artísticas e do universo do entretenimento — com mais destaque para a música pop — como os tínhamos conhecido.

Em todo filme que se propõe a deslindar tal assunto, é impossível não encontrar um traço que seja de “Crepúsculo dos Deuses” (1950), o enredo definitivo sobre estrelas num ocaso melancólico, sempre à espera de um derradeiro (e enganoso) salvador, levado à tela por Billy Wilder (1906-2002). A Norma Desmond da vez é Grace Davis, uma cantora negra de meia-idade que se vê às voltas de uma aposentadoria forçada, ideia que recrudesce e esfria, justamente por esses dois fatores tão determinantes, como ela mesma diz a certa altura da trama. Tracee Ellis Ross empresta calor a uma personagem que poderia restar perdida num labirinto de futilidades as mais absurdas, mesmo para quem compartilha da esfera transcendental em que Davis se refugia da dureza da vida dos simples mortais, muito bem ressaltada no texto de Flora Greeson, que se presta a uma saudável disputa entre Ross e Dakota Johnson pelo posto de estrela do filme. Na pele de Maggie Sherwood, a garota ambiciosa, mas cheia de escrúpulos, que deseja mais da vida que tirar o amendoim do frango xadrez da patroa, Johnson encarna precisamente o outro lado da moeda.

Contudo, as entradas bissextas de Kelvin Harrison Jr. como David Cliff, o músico de rara sensibilidade que enxerga o sucesso como a submissão ao dinheiro e seu “sistema” — no que não deixa de ter boa medida de razão —, roubam a cena. Harrison Jr. volta com mais destaque no final, protagonizando a grande reviravolta da trama. E cantando melhor que muito medalhão por aí.


Filme: A Batida Perfeita
Direção: Nisha Ganatra
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Musical/Drama/Comédia
Nota: 8/10