Guimarães Rosa: 55 anos sem o homem que fabricava palavras Foto / Luis War

Guimarães Rosa: 55 anos sem o homem que fabricava palavras

Em entrevista à jornalista Marcia Scapaticio, da “Revista Sesc”, ao ser indagado sobre as múltiplas perspectivas de análise crítica, que permeiam a obra de João Guimarães Rosa, disse-lhe que a variedade de relações literárias — filosóficas e psicanalíticas, conforme apontara Benedito Nunes a partir de Platão e Jung; ou sociológicas sob o ponto de vista de Antonio Candido, via Karl Marx —, que aflora no “Grande Sertão: Veredas” vem a ser, consideravelmente, explicitada pelos inúmeros colóquios que a obra de 1956 possibilita aos Leitores, aptos ao processo dialógico, que a Literatura se predispõe a acenar por intermédio de símbolos, signos, alegorias, parábolas, apólogos, efabulações e afins. No discurso rosiano, tal proposição de diálogo se afaz de modo mais palpável à leitura, consoante a alusão às novelas de cavalaria do período trovadoresco medieval; e, consequentemente, ao “D. Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes; ou ao pacto de Riobaldo com o demônio das Veredas Mortas, que nos remete ao “Fausto”, de Goethe, ou até mesmo ao “Doutor Fausto”, de Thomas Mann.

Após o preâmbulo introdutório, quiçá seja de bom alvitre explicitar que o crítico literário Antonio Candido ressalta que, para quem souber ler, a obra de João Guimarães Rosa tornar-se-á um formidável manancial de análise literária. No “Grande Sertão”, especificamente é perceptível que, no decorrer da narração que se inicia com o vocábulo “Nonada”, os múltiplos aspectos discursivos se apresentem ao Leitor, desde o diálogo com as epopeias homéricas até “Guerra e Paz”, de Tolstói, sem se olvidar da relação hermenêutica com Proust, Faulkner, Kafka e Joyce. Na mencionada entrevista com a qual inicio o artigo em questão, confesso que, quando eu me deparei com aquela extraordinária invenção da escritura assinada por Guimarães Rosa, não imaginava que um ser humano fosse capaz de escrever com uma vara de condão em mãos, ao subverter a ficção de tal feita que o encantatório e o sublime se rendem à narração, qual fossem arrastados por uma correnteza alquímica, que transpõe a matéria-prima da linguagem, em disfarces do mito-geográfico do Liso do Suçuarão, por exemplo. Por outro lado, no “Grande Sertão”, apesar da poesia que brota às margens São Chico sobre o qual o jagunço-narrador Riobaldo-Tatarana se abarranca para dizer a sua estória ao hóspede-leitor, também se retrata a fronteira limítrofe pelo viés da natureza humana mais pérfida, como a do Hermógenes ou Maria Mutema.

Neste contexto, Diadorim se equilibraria por dois segredos de identidade: o de paternidade; e, sobretudo, o de sexualidade. Logo, é neste exato momento que se prefigura Reinaldo, jagunço do bando de Joca Ramiro — espécie de chefe político assassinado à traição —, em diálogo com o fidalgo cinquentenário e andarilho, D. Quixote de La Mancha. A suposta Donzela Guerreira se equipara ao Cavaleiro da Triste Figura, quando utiliza o subterfúgio de recriação de Reinaldo/Diadorim, já que ambos são personagens de si mesmos refeitos para a ação de combate. A enigmática figura hermafrodita, andrógena, ao longo da estória vem a ser detentora de revelações implícitas: a filiação por parte do pai-ídolo Joca Ramiro; a alcunha Diadorim; e, enfim, a constatação do corpo virgem e nu sobre a mesa, após o embate com o pactário Hermógenes.

Em seu discurso de posse proferido em 16 de novembro de 1967, na Academia Brasileira de Letras, intitulado “O Verbo e o Logos”, o ficcionista João Guimarães Rosa, já no primeiro parágrafo, saudava a sua terra natal, o burgo do coração, com o instrumento da poesia e do neologismo, que, destarte, abalizam a sua obra literária: “Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: os pastos da Vista Alegre.” Mais adiante, o autor de Grande sertão: veredas se dirige aos confrades; e, profeticamente, diz: “O afeto propõe fortes e miúdas reminiscências. Por essa mesma proximidade, tanto e muito me escapa; fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente”.

De fato, “fino, estranho, inacabado” era o destino de João Rosa: “Supersticioso, sim; é claro. Superstição (…) o ilusório; antes quase poesia”, consoante predissera. Não obstante, não houvera de ser ilusória a superstição de Guimarães Rosa, que protelara a sua posse na ABL, diz que por recear a circunspecção emocional perante o báratro da imortalidade. O dr. João Rosa, como o chamavam Zito e Manuelzão, portanto, que houvera sido eleito quatro anos antes para a Cadeira 2, até então ocupada pelo diplomata João Fontoura, adiara o quanto fora possível a data da cerimônia, na Casa de Machado de Assis.

Curiosamente, o dito supersticioso Guimarães Rosa, cuja data de nascituro em 1908 demarca o ano da morte do autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, como se, simbolicamente, o substituísse neste plano terreno, faz a sua última aparição pública em sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), visto que três dias depois se encontraria em estado de encantamento. Não obstante, não como se previsse o seu passamento; e, sim, como se profetizasse o legado ilusionista que sagraria à posteridade, segredou-nos ao pé do ouvido, feito murmurejo dos córregos das Minas Geraes nascentes: “As pessoas não morrem, ficam encantadas. Mais eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais, que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico”.