Uma das mais belas histórias de amor do cinema contemporâneo está na Netflix e você deveria assistir Yoshio Sato / Focus Features

Uma das mais belas histórias de amor do cinema contemporâneo está na Netflix e você deveria assistir

Sofia Coppola, em “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation), mostra como o loteamento do olhar (em Tóquio, onde ela filmou, todos os espaços da percepção estão tomados) pode significar o momento de impasse na vida dos personagens envolvidos.

 O cinquentão (Bill Murray, excepcional, como sempre) que desce do trem do seu casamento — pelo menos temporariamente, enquanto está filmando um comercial de uísque para os japoneses — está perdido nessa estação intermediária, esse lugar que confluências, de idiomas que não se traduzem, que serve para despejar os passageiros de um comboio e recolher os passageiros de outro. Acontece o mesmo com a jovem (Scarlett Johansson), que duvida do seu casamento e é despejado dele também provisoriamente, já que o marido fotógrafo tem outras preocupações.

Este pode ser encarado como um filme para fotógrafos: a arte da imagem, nele, está totalmente identificada com o sufoco do olhar, a comercialização do que deve ser visto por todos. É por isso que o diretor do comercial é um bruto incompreensível, o fotógrafo que tenta tirar emoções do rosto do ator é um ignorante de cinema e o maridinho cool da principal personagem feminina é um imbecil corporativo, que cai nas artimanhas de uma starlet vazia.

Eles reforçam o tema do filme, que é mostrar como o mercantilismo multinacional ocupa todos os espaços da visão para dela tirar o máximo proveito, jogando fora o que há de mais valioso, as relações verdadeiramente humanas.

Assim, o homem maduro e a jovem bacharel em filosofia, desencontrados de si, despejados de seus vagões, procuram fazer a baldeação na estação-Tóquio, encontrar um trem que os resgate.

A maldição do olhar viciado nas imagens comercializadas é reproduzir eternamente o imaginário do Mesmo. O truque é carregar nas cores, nos movimentos de luz, nas trucagens, para dar a falsa impressão de diversidade. Não existe diferença entre o Monte Fuji visto ao longe de maneira bem-comportada, a partir de um campo de golf (o monte é apenas uma paisagem fake, mural que imita a natureza) e a animação de um dinossauro no centro de Tóquio. É tudo o Mesmo, que se reflete nas palavras gastas, nos cumprimentos forçados, na gentileza caríssima dos hotéis de luxo, no striptease profissional e bizarro.

Os dois personagens — o cinquentão e a jovem — fogem do que costumam conectar, pois estão à procura da diferença, que dará sentido às suas vidas (mesmo que não saibam disso conscientemente). O ator escapa dos fãs, da troupe que o escolta, e faz gestos cínicos para quem tenta manipulá-lo. No outro lado do bar, ela foge das conversas sobre anorexia da mesa onde está, exausta do esforço que os viciados na mesmice tentam impor por meio de falsos impactos nos gestos e ideias. Essa fuga mútua empurra os dois para vários encontros e daí para uma relação que se transmuta numa revelação.

Quando finalmente eles assumem esse amor frutificado na diferença, o olhar deixa de ser refém da cidade e Tóquio aparece como nunca, dando espaço para um travelling inesquecível, onde a imagem divide-se entre o perfil dos edifícios e o céu, território que não pode ainda ser loteado.

A libertação pelo amor vindo da diferença é o fim do sufoco do olhar. É pegar um trem que não estava programado, é inventar uma linha que, em vez de ir para a capital, pegue uma estrada imaginária que nos leve para o alto da serra, por exemplo. De lá, podemos descortinar uma nova paisagem, soma do que herdamos com o que adquirimos.


Filme: Encontros e Desencontros
Direção: Sofia Coppola
Ano: 2003
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10