Filme da Netflix vai te levar para dentro dele e mudar a sua forma de encarar a vida Divulgação / Netflix

Filme da Netflix vai te levar para dentro dele e mudar a sua forma de encarar a vida

A vida é um ajuntamento de momentos exasperantemente ordinários, entremeados aqui e ali por eventos maravilhosos e horríveis em igual proporção, mas só conseguimos nos fixar nestes, nos horríveis, nos infaustos, nos desastrosos, nos trágicos. A beleza está em muito mais do que pode captar nossa humana miopia, e, por essa razão, escapa-nos esse sutilíssimo movimento da vida, como o da delgada bailarina num palco suntuoso, quanto a metamorfosear em beleza e poesia quase tudo o que entendemos como feito de uma matéria qualquer, fenômeno que só ocorre mesmo se o permitimos, ainda que inconscientemente. Elucubrações acerca de todos os assuntos — das conquistas mais vistosas, cuja importância têm o condão de definir nossa passagem por este mundo, aos malogros, tanto os insignificantes como aqueles que seguirão nos perturbando até o último suspiro — se sucedem desordenadamente, nutrindo-se, claro, das tolas expectativas acerca do futuro, os planos cercados de delírio e de inutilidade que traçamos para o porvir, sabendo que o amanhã é a promessa de que o hoje desdenha.

O suicídio, segundo o sociólogo francês Emile Durkheim (1858-1917), é a única questão que importa na vida, dada sua complexidade dos pontos de vista sociológico, metafísico e religioso. Se nos mantivermos longe da perdição maior do homem e ficarmos aqui, neste plano, frente a frente com nossos tantos dilemas vitais, superando nossas fraquezas, convertendo-as em alguma coisa que pode não ser propriamente virtude, mas que liberta-nos do círculo vicioso da autopiedade e da maldição das emoções represadas, já teremos, como diz Durkheim, cumprido boa parte do papel de que a vida nos encarrega. O madrilenho Hugo Stuven mistura os dois conceitos, o da vida em seu estado puro, isto é, um não acabar de desditas que nos maculam o espírito, e nosso entendimento acerca dessas experiências, num drama sensível e denso, cuja acrimônia é suavizada pelo esplendor da natureza, selvagemente insensível a nossos uivos. “Solo” (2020) expõe a dor de um homem que se desintegra em silencio após uma fatalidade, mas faz questão de retroceder na vida de seu protagonista e deixar claro que, de uma maneira ou de outra, ele teve o queria — e precisava.

Inspirado na história verídica de Álvaro Vizcaíno, o roteiro de Stuven e Santiago Lallana prepara o espectador para o infortúnio que marca a vida do personagem central com cenas que o colocam no papel de vilão da história, escolha acertada e que ganha dimensões progressivamente imprescindíveis para que se tenha do enredo a impressão que ele reivindica em segredo. Vizcaíno, interpretado com surpreendente verossimilhança por Alain Hernández — começa o filme em rota de colisão com rigorosamente todos quantos o rodeiam, da namorada, vivida pela sempre instigante Aura Garrido, ao amigo Nelo, de Ben Temple, com quem roda o mundo à procura da onda perfeita. É precisamente o desentendimento com o personagem de Temple, por uma razão estupidamente infantil, que termina por definir o que vai lhe acontecer. Diante da negativa de Nelo ao convite para uma nova aventura, Vizcaíno parte para uma incursão autodestrutiva às Ilhas Canárias, no noroeste africano. É onde se dá o episódio quase trágico que redefine a maneira como o personagem de Hernández há de viver, munindo-se, para começar, da humildade que nunca teve a fim de bancar um sincero mea culpa, o segmento mais comovente da trama.

“127 Horas” (2010), de Danny Boyle; “Náufrago” (2000), de Robert Zemeckis; “Gravidade” (2013), de Alfonso Cuarón; “Águas Rasas” (2016), de Jaume Collet-Serra, este, por evidente, o mais parecido com o filme de Stuven, são todos histórias de redenção, de mudança de vida motivada por um imenso trauma. Esse é, muitas vezes, o modo mais eficaz, o único jeito de tipos como Vizcaíno se emendarem. Ele, decerto, entendeu o recado.


Filme: Solo
Direção: Hugo Stuven
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Biografia/Romance
Nota: 8/10