Sensível e revigorante, a história de amor obrigatória, na Netflix, que todas as pessoas deveriam assistir Divulgação / DreamWorks

Sensível e revigorante, a história de amor obrigatória, na Netflix, que todas as pessoas deveriam assistir

O coração tem mesmo razões que a própria razão desconhece. Só assim para se aceitar as infinitas possibilidades de ser abalroado pela violência de um sentimento que muitas vezes acaba por triturar-nos o corpo e a alma, tanto e com tal força que os golpes precisam ser cada vez mais contundentes para que nunca deixemos de sentir o baque. A pele fica mais resistente, como uma armadura de calos, pronta para repelir os futuros ataques que vêm sempre sem prévio aviso, o coração se reveste de uma camada de espinhos, tão ou mais pontiagudos que as lanças com que o amor investe contra os menos precavidos, valemo-nos da dor transformadora da experiência para tentar engendrar um plano de fuga se tudo o mais falha, porém quanto mais calculadas parecem nossas providências, mais ardiloso se torna o amor, inventando suas mil estratégias para, feito um general diante de uma legião de bravos  soldados, burlar a vigilância e invadir nossas fortalezas mais secretas, aquelas em que mantemos o que têm valor para nossa jornada no mundo, o que verdadeiramente importa, tudo quanto cremos merecer o lugar mais íntimo e mais faustoso do nosso santuário particular. 

O amor tem sua lógica própria, e quase sempre manifesta um solene desprezo por convenções de toda natureza, especialmente as que tentam, sem o menor êxito, dobrar as humanas emoções, todas, em maior ou menor grau orbitando em torno de sua influência, como satélites que só brilham porque refletem o brilho da estrela maior que os lidera. Amar e se deixar ser amado é uma operação delicada, plena de detalhes. Toda a sensibilidade é pouca quanto a nos fazer suficientemente cuidadosos para com os pleitos que nos reivindica o amor, malgrado quase nunca os possamos atender — e ele raramente se predisponha a transigir. Amor, num primeiro instante, passa a léguas de coisas básicas como discernimento, raciocínio atilado, qualquer postura um tanto mais fria diante do que pode vir a se tornar o próprio sentimento amoroso, uma vez que o amor é fogo que queima em todas as circunstâncias, inclusive quando as chamas parecem apagadas para sempre. “E se Fosse Verdade” (2005) se constitui num elogio a essa inconstância do amor, incansável em florescer para quem não o dignifica, e, ironicamente, também dotado do milagroso talento de se materializar para aqueles que mais precisam dele. Mark Waters vai fundo nesse argumento, lançando mão de uma história nada comum.

Um homem e uma mulher com pouco em comum se cruzam numa quadra ingrata da vida, sendo que ela já não está inteiramente nesse plano. Essa mulher, Elizabeth, vivida com a doçura contumaz de Reese Witherspoon, fica entre a vida e a morte depois de um grave acidente de carro, e, pelo que logo se depreende do roteiro de Peter Tolan e Leslie Dixon, cheia de pendências aqui embaixo. Essa conclusão se mostra acertada com a entrada em cena de Mark Ruffalo como David, o sujeito boa-praça que aluga o apartamento de mocinha de Witherspoon. Waters consegue estabelecer os pontos de contato nas personalidades de uma e outro, sobre os quais se debruça mais demoradamente na sequência, expondo as rotinas algo tediosas de seus protagonistas. Se Elizabeth nunca namorava por estar sempre completamente absorvida pelos plantões no hospital onde trabalhava como médica, David entrega-se a uma misantropia precoce depois da morte inesperada da esposa. E é precisamente isso os liga, num episódio narrado em flashback no terceiro ato, já próximo ao desfecho.

Valorizo filmes que me mostram coisas que adormeciam num escaninho qualquer da memória e reacendem em mim uma súbita fé na humanidade, na vida, em mim mesmo, arrancando-me do conforto dos perigosos prejulgamentos. É este o caso em “E se Fosse Verdade” (2005), uma trama nada original e, diga-se, altamente previsível, vista em reiteradas ocasiões ao longo da história do cinema — essa mesma ideia é o alicerce semântico de “O Céu Pode Esperar” (1943), de Ernst Lubitsch (1892-1947), refilmado em 1978 por Warren Beatty e Buck Henry (1930-2020), e em 2001 por Chris e Paul Weitz. Contudo, já que o homem está mesmo aprisionado em suas emoções, rendo-me ao lirismo repetido do filme de Waters, um bálsamo para corações partidos e para aquelas almas nem alegres nem tristes, só poetas, fugindo da mudez irreversível do amanhã. Carpe diem.


Filme: E se Fosse Verdade
Direção: Mark Waters
Ano: 2005
Gêneros: Romance/Fantasia/Drama/Comédia
Nota: 9/10