O fascínio da Literatura

O fascínio da Literatura

Certa feita, o Homem, sob o púlpito do largo público, discursou aos plebeus aldeães sobre o fato de que quem lidasse com o barro moldável e movediço da Literatura houvera de ser mais sábio e longevo, do que aqueles indivíduos que não se habilitaram filosófica e intelectualmente, por intermédio do convívio co’as sutilezas das obras de ficção, a partir do tempo cronológico (e psicológico) da narração, dos acúmenes da arquitetura do enredo; da conjectura do espaço físico em descrição discursiva; e, sobretudo, da constituição das personagens fincadas no imaginário coletivo, tais como Iracema, Capitu, Macunaíma e afins. Não obstante, logo um dos ouvintes da plateia, trajado de descrença e, anônimo e iletrado, interpelou-o a respeito da afirmativa que extrapolava a imprecisão da cronologia da existência humana: — Porventura, o Orador, insano e tresloucado, nos poderia indicar a fonte de pesquisa com documentação comprobatória; assinatura de pareceres jurídico-científicos; referências bibliográficas greco-latinas; e dados estatísticos, que comprovasse tal iníqua e estapafúrdia asseveração, sobre a longevidade do ser humano, de modo que não soasse grotesca e estouvada tal assertiva, ao se atribuir a extensão do percurso da experiência ao diálogo com os registros literários de ficção. — exigiu-lhe o Anti-leitor, por vocação atávica, genética ou opcional.

Diante da requisição sobre a obrigatoriedade de comprovação de âmbito documental do Compendium, o Homem fora obrigado a explicitar que o sermão proferido não se referia ao tempo personificado pelo deus grego Chronus, a nos acenar com os mistérios de efemeridade. Destarte, absolutamente, o sujeito palrador explicou que não se referira ao período cronológico vivenciado pela humanidade, apto a ser medido pelo calendário gregoriano que, com toda a razão, facilmente poder-se-ia ser mensurado por uma simples contabilidade dos sóis e luares ameríndios; pelos grãos de areia da ampulheta medieval; ou pelos gorjeios pontuais dos relógios cucos das moradas dos cidadãos da aldeia inaudita. 

Nisto, o impávido palestrante avalizou que sentenciara que os indivíduos ilustrados, afeitos à leitura de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes; ou Madame Bovary, de Gustave Flaubert, por exemplo, sobreviveriam mais tempo do que as espécies desletradas por analfabetismos, que não se humanizavam pela ficcionalização da realidade inventada, por singularidades de gênero, número ou grau. Todavia, o Orador elucidou reportara-se ao fato de que quem se deixa envolver com a escrita de um poema, romance, crônica ou conto (de fada) adquiriria o dom de embalsamar o ideário cronológico do tempo, porque se embrenhava por inúmeras cooptações de histórias redescobertas, que o impeliriam a outras vidas e épocas escrituradas pelo viés da imaginação autoral.

— Por esta razão, meu nobre e prezado senhor, asseguro eu que quem se predispuser a humanizar-se pelos registros da ficção há de habituar-se à intensidade de outras existências, que, sutil e harmoniosamente, se intercalam por sobre a reflexão de cada Leitor, apto a desvendar os nós cegos e imemoriais com a maestria dos marinheiros de Victor Hugo, Charles Dickens e Jorge Amado; pelas florestas encantadas de William Shakespeare, Dante Alighieri e Paul Valéry; ou pelos sertões íntimos de Dostoiévski, William Faulkner, Fernando Pessoa e Guimarães Rosa. Decerto, aqueles que se enfeitiçassem com os cânticos das sereias imaginárias de Homero, James Joyce e Thomas Mann; ou com os ludíbrios introspectivos de Goethe, Tolstói, Marcel Proust e Franz Kafka, que, como num toque de mágica da vara de condão, a vida se se multiplicaria a impulsionar-se ao devaneio da escrita, o que a ultrapassaria o a.L ou d.L, antes e o depois da Leitura, pautada por bálsamos de invenção estética, que há de se permear, por multíplices imagens desvairadas; inúmeros símbolos e enigmas; distintas alegorias e apólogos; diversos ritmos dissolutos; incontáveis signos fonéticos; incalculáveis figuras de linguagem e etceteras.

Por este raciocínio, constatou-se que aquelas criaturas que se permitiriam abalroar-se diante de uma árdua e hermética narrativa de Jorge Luis Borges, Virgínia Woolf ou Clarice Lispector viverão mais vidas do que os outros indivíduos comuns, que não se habilitaram ao convívio co’os borrões da arte literária. De outra feita, o Homem ponderou que poder-se-ia certificar, sem receio dos apupos ou do ridículo, que estes elementos iluminados pela Escrita sobreviverão mais tempo do que aqueles que não consentiram a si se desembaraçar das teias da ignorância por uma lógica atemporal, por intermédio da sobriedade de alucinação de um traço poético ou narrativo. 

— O fascínio da Literatura há se originar como uma espécie de pecado original que, ao desnudar-se diante da imagem e semelhança d’um esboço da condição humana, se desintegra no Jardim do Éden da consciência, a partir da Criação de cunho ficcional, que construímos em nós, à proporção que nos reinventamos como eu-líricos, narradores ou personagens de si mesmos. — disse-lhe o Homem.— Enfim, o ser humano há de descortinar-se mediante capítulos e/ou estrofes, de modo a saciar-nos com o vozear inimaginável, que alicerça o intento da lida literária, a fabricar, fio a fio de Ariadne, por método artesanal da concepção estética, o labiríntico do infinito palpável, que se abisma, silenciosamente, dentro nós Leitores, por desvendamento dos sonhos e quimeras, a se metaforizar por paráfrases e paródias, versículos e parábolas; odes e sonetos, em formato de Oração na acepção mais lírica do vocábulo.