Inspirado em Tarantino, novo filme da Netflix é uma pequena pérola que você não pode perder Sara Petraglia / Netflix

Inspirado em Tarantino, novo filme da Netflix é uma pequena pérola que você não pode perder

A arte se constitui por si só numa ponte — do homem para consigo mesmo, para com o outro, para com a existência —, ao mesmo tempo em que reflete o que se passa na sociedade, catalisa essa tendência e subverte o processo na medida em que se depara com falhas na construção da história. Todavia, expoentes de manifestações artísticas as mais diversas têm sido forçados a, antes de mais nada, ressignificar o que queriam dizer, tal o medo de soarem politicamente incorretos, praga da qual ninguém mais se livra. A relevância do discurso passou a ser dada por quão ajustável ao consenso pode ser, reflexo inquestionável dos tempos estranhos que vivemos. Essa nova realidade, tão austera quanto confusa, joga-nos a todos num abismo, fundo, escuro, lodoso, em que nada é mais o que sempre fora e ninguém sabe de fato o que pode externar, nem como. Incontinente, palavras para as quais nunca havíamos atentado antes dominaram o cotidiano, repetidas estupidamente, mas com convicção, prova de que o efeito manada é um dos fenômenos mais instintos da natureza humana, de que indivíduos lançam mão, como os bichos selvagens, para salvar a própria pele. Outrossim, vocábulos e ideias que aludem a tédio, ócio, degeneração moral, loucura, amplamente cristalizadas em qualquer grupo social da face da Terra, se valeram do flanco aberto pela supressão de liberdades individuais no decorrer de um tempo insuportavelmente longo para usurpar a importância de conceitos verdadeiramente essenciais quanto a se erigir democracias fortes, possíveis apenas sob o guarda-chuva do pensamento crítico e desassombrado. Homens do século 21 tivemos de criar um jeito novo de nos relacionarmos com o mundo a nossa volta, absorvê-lo e digeri-lo o mais rápido possível, porque assim se nos mostra a vida pós-moderna. Uma catástrofe de dimensões inestimáveis.

Ecos do fascismo são ouvidos em toda parte hoje, ainda que passadas quase oito décadas da morte trágica de seu ideólogo. Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945) terminou seus dias na ponta de uma corda num vilarejo do norte da Itália, exposto como um troféu depois de caçado pelo povo que jurava amar — o amor dos tiranos por seus súditos, sempre adequadamente calados —, sem paciência para julgamentos prolixos em que causídicos ardilosos bem que poderiam encontrar uma brecha qualquer que o absolvesse. Mussolini não sobreviveu à cólera indomável de militantes antifascistas, mas se nutre da memória afetiva de gente perigosa que não conhece seu legado de autoritarismo e desprezo pelo conhecimento, e dos que conhecem, mais perigosos ainda. Além de ostentar uma das personas maia odientas da história sob a perspectiva da civilidade ela mesma, o Duce se fez notar por uma propensão desmedida ao desvio de dinheiro público e acúmulo de bens, evidência que joga por terra uma vez mais o argumento falso de que ditadores são monstros ciosos da gestão do patrimônio nacional. É justamente por essa seara espinhosa que Renato De Maria se embrenha. O italiano, diretor de “Roubando Mussolini” (2022), ataca o fascismo por um de seus pontos mais fracos (e menos conhecidos), a partir de uma sofisticada alegoria, em que um dos líderes mais truculentos da Europa é mostrado como um sujeito de ambições desmesuradas, além de um hipócrita, dado a sustentar amantes ao passo que se anunciava um ferrenho defensor do que entendia como “moral e bons costumes”.

De Maria opta por não se fixar em Mussolini, não obstante o título de seu filme faça-lhe referência, e se concentra nos eventos fictícios que registra. Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, na Milão de abril de 1945, Isola, um ladrão famoso nos becos escuros da cidade, fica sabendo que a maior parte da fortuna criminosa do Duce, composta do que conseguia espoliar de inimigos e mesmo de cidadãos italianos — no desfecho, o personagem de Pietro Castellitto comete a inconfidência que decerto o motivou a seguir até o fim com o plano, relacionada a um objeto específico subtraído por Mussolini — está escondida em algum lugar da Zona Negra, pronta para ser despachada para Suíça, país em que o tirano planejava se exilar. Tomando esse pressuposto, o roteiro, coescrito por De Maria, Federico Gnesini e Valentina Strada, trabalha as possibilidades, reais ou nem tanto, que Isola tem de ser bem-sucedido na empreitada, que vai levar a cabo com uma quadrilha que, malgrado coesa, tem seus momentos de justa hesitação, uma vez que o líder italiano, executado dois antes do suicídio de Hitler na Alemanha, em 28 de abril, ainda gozava de prestígio junto à tropa. Enquanto delineia a operação, o diretor regala a audiência com preciosos respiros lírico-românticos na voz de Matilda De Angelis como Yvonne, a namorada cantora de Isola (e concubina de um alto oficial fascista), que entoa clássicos do cancioneiro popular italiano, acerto da trilha sonora de David Holmes.

Tendo conseguido projetar-se politicamente junto à opinião pública ao longo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e se mantido no poder até o ocaso da Segunda Guerra, em 1945, quando a derrota do Eixo foi determinante para os rumos de sua própria vida, Benito Mussolini, lamentavelmente, vive. Mas não custa sonhar que o fascismo tenha mesmo sido pulverizado, liberdade que Quentin Tarantino toma quanto ao nazismo em “Bastardos Inglórios” (2009). Para isso é que a arte serve.


Filme: Roubando Mussolini
Direção: Renato De Maria
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Comédia/Crime
Nota: 9/10