O filme mais esperado de 2022 e uma das principais apostas para o Oscar 2023 acaba de estrear na Netflix Reiner Bajo / Netflix

O filme mais esperado de 2022 e uma das principais apostas para o Oscar 2023 acaba de estrear na Netflix

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), fundada na esteira do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, para mediar conflitos armados e ajudar em possíveis negociações de paz, existem trinta zonas de guerra no mundo hoje, na maior parte dos casos por disputas de território provocadas por desavenças religiosas, tentativas de subjugação de uma etnia sobre outra ou a afirmação da soberania acerca de recursos naturais. A política também dá o tom da guerra ao fomentar diferenças quanto ao entendimento da constituição própria de um povo. Movimentos separatistas no Canadá, na Catalunha e na Irlanda do Norte se arrastam até hoje, deixando um rastro de violência, atraso e empobrecimento econômico em alguma medida. A ONU bem que tenta, mas o fardo é penoso, mesmo para ela. A guerra é, em muitas ocasiões, o último — e único — recurso, mas cobra seu preço. Em “Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2011, o historiador israelense Yuval Noah Harari defende que o homo sapiens só subiu tão alto na escala evolutiva graças à capacidade de partilhar informação a respeito dos assuntos mais prosaicos, como os melhores bosques da floresta para se caçar ou que alimentos poderíamos ou não ingerir sem correr o risco de morrermos intoxicados, por exemplo. E esse conhecimento sobre tudo o que existe de relevante, impossível aos outros animais, não seria nada se não viesse acompanhado do aprimoramento da força bruta.

Primeiro, o homem subjugou os bichos que considerou mansos, e os fez trabalhar para si. Depois, a fim de ser capaz de vencer feras mais corpulentas e ferozes do que ele múltiplas vezes, desenvolveu ferramentas como tações, lanças e fundas e, assim, ampliou seus territórios. O próximo passo foi dominar o fogo, criar a pólvora e a sorte do gênero humano estava dada: a guerra. Queira-se ou não, foi por meio de conflitos armados que conseguimos tudo o que temos. Declarar-se guerra contra quem quer que seja nunca é uma decisão fácil, mas é, muitas vezes, a única decisão a se tomar, a fim de se evitar a desonra, que, conforme ensina Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido quando da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), se encarniça de um povo que não encampa as causas pelas quais se deve combater. Temos que admitir: a guerra fascina, e esse é o problema. Em muitas ocasiões, foi por meio da guerra que a humanidade conheceu seus grandes heróis, homens e mulheres que se tornaram personalidades graças a uma atuação de coragem memorável ao longo de uma série de enfrentamentos entre exércitos. Contudo, o homem parece ter se viciado no cheiro de pólvora queimada e no ruído do aço dos canhões ainda estalando e prefere abdicar da diplomacia, resolvendo suas diferenças com o emprego da força quando uma boa conversa trataria de evitar um banho de sangue que, não raro, começa por causa de um prosaico mal-entendido.

Filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não são exatamente raros. O palpite, errôneo, deve-se ao fato de muitas dessas produções remontarem a tempos quase esquecidos, dados por mortos, mas que, em razão do comportamento errático e insensato do gênero humano, voltam à baila de quando em quando, trazendo consigo a necessidade de se refletir sobre os rumos a serem tomados pelas nações neste alucinado e alucinante século 21, estigmatizado já na primeira hora como uma era de extremos, violência e medo. “Nada de Novo no Front” (2022) não é, com a licença do trocadilho, novidade alguma. Mais recente adaptação do romance homônimo do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), o filme de Edward Berger, compatriota do escritor, reconstitui os passos de uma longa marcha, iniciada em janeiro de 1929 e protagonizada por um garoto assustadiço, levado a amadurecer na marra em meio à barbárie tão característica de uma guerra. Remarque publicou seu livro, ainda um campeão de vendas num mundo cada vez menos chegado à reflexão e ao chamado ócio produtivo muito próprios da leitura, como um ato de protesto, manifesto contra a opressão e mesmo o grito de socorro de uma voz que se levanta na defesa do equilíbrio, justamente por conhecer de muito perto o drama de homens que se enfrentam até a morte trágica. O romancista capta à perfeição os horrores daqueles dias e a profunda indiferença da população alemã encarnada pelos combatentes que voltavam das frentes de batalha. Remarque deixou a Universidade de Münster para, aos 18 anos, juntar-se ao exército da Alemanha. Foi ferido nas trincheiras em três ocasiões, uma delas com gravidade, mas recobrou a saúde. Para o bem da humanidade.

Nenhuma manifestação artística incorpora avanços da tecnologia com a rapidez e o vigor do cinema. Já havia sido dessa forma em 1930, quando o russo-americano Lewis Milestone (1895-1980) lançara a primeira versão fílmica das impressões de Remarque, potencializadas pelo som, a grande revolução à época, depois de três décadas de cinema mudo — tanto que o segundo longa a repisar o livro, de 1979, dirigido por Delbert Mann (1920-2007), ficou muito aquém das expectativas. No caso deste longa, já apontado como favorito ao Oscar de Melhor Filme em 2023, o que mesmeriza, claro, são as imagens. O roteiro, de Berger, Lesley Paterson e Ian Stokell, faz com que o espectador tenha uma noção ligeira (e algo capciosa) do que virá a ser o enredo. A abertura, com tomadas de um bosque nas cercanias do front oeste do título original, estarrece pela beleza, pelo cálculo meticuloso do diretor ao posicionar cada câmera no ângulo exato e pela fotografia bem cuidada de James Friend. Na sequência, como também fazem Sam Mendes em “1917” (2019), e, guardadas as devidas proporções, David Lean (1908-1991) em “Lawrence da Arábia” (1962), Berger entra na história com violência, introduzindo seu personagem central como que atordoado no centro de um tiroteio, com direito a muitas explosões e takes aéreos. O Paul Bäumer de Felix Kammerer é uma extensão fiel do personagem esquadrinhado no livro. Kammerer absorve essa aura de alheamento, de desespero, pungente em Remarque, dando a Bäumer a definição muito correta de alter ego do escritor. Tudo o que sucede, até o desfecho, apropriadamente melancólico, é o reforço dessa cena: garotos sem esperança tentando sobreviver num ambiente o mais hostil possível. Não é pouco.


Filme: Nada de Novo no Front
Direção: Edward Berger
Ano: 2022
Gêneros: Guerra/Drama/Ação
Nota: 9/10