A história de amor, na Netflix, que vai deixar um gosto de esperança e que todos deveriam assistir Samuel Dore / Dragonfly Film

A história de amor, na Netflix, que vai deixar um gosto de esperança e que todos deveriam assistir

Sábio o clichê quando diz que o amor move montanhas. É a partir do mais humano dos sentimentos que as mudanças mais necessárias e profundas começam a tomar corpo, para uma pessoa ou para o mundo inteiro. A natureza do homem é feita de limitações e cabe a cada um, primeiramente, reconhecê-las e, então, conquistar seu lugar no mundo, superando os desafios que qualquer um tem. Naturalmente, aos poucos vão surgindo mais e mais questões, arestas mais grossas a aparar, e nesse momento nos damos conta de que se estamos sozinhos tudo fica muito mais difícil. Somos todos fracos, mas também fortes, e é essa dicotomia tão nossa que nos impulsiona a tratar nossos medos de igual para igual, sem menosprezá-los — porque, se sentimos medo, algum motivo razoavelmente justo deve haver — nem pensarmos que estamos em desvantagem só por isso. O ponto é que não é sempre que enxergamos nossas imperfeições como o que elas de fato são: trampolins de onde saltamos para um oceano de novas possibilidades, sem que precisemos vencer a correnteza só com a força de nossos braços falhos e nossas pernas cansadas.

Retratando uma das pelejas mais duras e mais belas a que alguém pode se lançar, à da busca por afirmação e respeito, Bruce Goodison e Amit Sharma levantam discussões sempre urgentes em “A Luta de Barbara e Alan” (2022), drama todo pontuado por momentos de humor ácido, mas preciso, outra característica dos personagens biografados pelos diretores. Barbara Lisicki e Alan Holdsworth, dois artistas que fazem de seus problemas mais íntimos matéria-prima para espetáculos de stand-up e canções de protesto, começam a sacudir o Reino Unido dos anos 1990 ao perceber que os pleitos que reivindicavam com a sutileza do humor e da música continuavam no universo etereal do sonho. Clamando pela apreciação de suas próprias demandas — e de mais de um bilhão de pessoas —, Lisicki e Holdsworth continuam a erguer as bandeiras e a voz pelos direitos das cidadãs e cidadãos com deficiência, britânicos ou não, arrastando pelo exemplo quem não se esquiva da obrigação de fazer do mundo um lugar melhor para todos.

O encontro a que o título original do filme de Goodison e Sharma, “Then Barbara Met Alan”, se refere é ambivalente. O assunto primeiro que os une, claro, é a defesa da cidadania da pessoa com deficiência, mas é aplicado, também, em senso muito mais estrito. Quando acabam de se apresentar num pub badalado pelos cadeirantes, amputados e surdos dos arredores de Londres, o roteiro de Jack Thorne e Genevieve Barr mostra Barbara, vivida por Ruth Madeley, portadora de espinha bífida — uma anomalia genética que impede o desenvolvimento integral de todas as vértebras —, saindo em disparada a bordo de sua cadeira de rodas motorizada. Alan, de Arthur Hughes, tenta alcançá-la, mas a perna esquerda, afetada pela poliomielite quando criança — doença que também implicou uma malformação no braço direito —, não ajuda. O personagem de Hughes sugere que os dois passem a noite juntos, mas não tem as quarenta libras do motel, nem as vinte dos aperitivos, e acha muito natural que Barbara pague tudo — uma prova de que os homens deficientes podem se igualar aos demais também na cafajestice. Talvez estimulada pela desfaçatez desse casanova sui generis, ela topa.

A grande qualidade de “A Luta de Barbara e Alan” é a maneira como Goodison e Sharma costuram a vida íntima de seus protagonistas à trajetória como militantes da causa do deficiente, a melhor estratégia, voluntária ou não, quanto a fazer essas pessoas serem vistas como gente “normal”. Algum tempo depois, com o namoro já firme — o que Barbara nunca assume —, ela revela, no camburão da viatura que os recolhe durante uma manifestação, que está grávida e que pretende ter o filho, o que efetivamente acontece, e da maneira ideal: Jasia nasce saudável e sem nenhuma deficiência. A narrativa fica especialmente deleitosa à medida que os diretores exploram as agruras de Barbara e Alan como um casal, até o rompimento, com os traumas previsíveis, mas sem maiores dramas. Tanto que permaneceram juntos na coordenação da Disabled People’s Direct Action Network (DAN), a Rede de Ação Direta de Pessoas com Deficiência, nascida depois de uma ousada campanha contra o Telethon, definido por Barbara como um show que menosprezava os deficientes e incentivava o restante da população a ter-lhes piedade. O slogan “Piss of Pity” (“Despreze a Pena”, em tradução literal) foi largamente usado e tornou-se a palavra de ordem do movimento.

O desfecho do filme, com todo o elenco, inclusive Barbara Lisicki, em pessoa, e Alan Holdsworth, por videoconferência, deixa um gosto bom de esperança. O mundo continua cheio de problemas, mas Barbara e Alan lutaram. É o que, no fundo, interessa.


Filme: A Luta de Barbara e Alan
Direção: Bruce Goodison e Amit Sharma
Ano: 2022
Gênero: Drama/Biografia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.