O filme mais esperado de 2022 chegou à Netflix e tem a classificação indicativa mais alta da história Divulgação / Netflix

O filme mais esperado de 2022 chegou à Netflix e tem a classificação indicativa mais alta da história

Ninguém pode ter tudo. Desde o instante mais primitivo de nossas vidas, momento em que nos damos conta de uma incôndita noção de humanidade, passa a nos acompanhar também a ideia de que o quer que desejemos exige sacrifício, às vezes tolerável, outras nem tanto. Nossas imolações nos altares profanos a que a vida nos força nunca são experiências propriamente deleitosas, mas esquecemo-nos da dor — ou fingimos não senti-la — conforme o sabor da glória vai se fazendo notar, aos poucos, com a devida parcimônia. Sem que percebamos, toma-nos a vontade de repetir o prato, uma, duas, mil vezes, até que o que era doce acaba deixando um rastro de amargor que sabe à podre, que envenena e, pior, vicia. Quanto mais se goza as falsas delícias do mundo, mais se tem claro que nenhuma delas satisfaz a vastidão das necessidades e das humanas carências, pelo contrário: àquela sensação primeira, tão aprazível, soma-se o fumo de alguma coisa que queima na pira de destruição em que arde a alma do homem desde o princípio dos tempos, alimentada até o Juízo Final, e mesmo no além-mundo choro e ranger de dentes serão uma constante, prova de que até depois da morte ninguém se livra do quis e fez quando vivo, como num quadro renascentista.

Uma dimensão épica (ou antiépica) é o que o neozelandês Andrew Dominik quer emprestar a “Blonde” (2022), biografia romantizada de uma das mulheres mais faladas da história, para o bem e para o mal. Carregada de fausto e pesar, a vida de Marilyn Monroe (1926-1962), a personificação do melhor e do pior de ser uma celebridade, dá azo a um retrato a preto-e-branco de uma estrela cuja presença ainda se faz sentir. Baseado no romance de mesmo nome de Joyce Carol Oates, uma das mais conceituadas escritoras americanas dos nossos dias, Dominik vai e volta no tempo, como se seu roteiro tivesse o condão de levar o espectador numa viagem pelo que deveria ter sido a vida de sua biografada, mas voltasse à dura realidade de uma das mulheres mais desejadas e mais infelizes de todos os tempos. O diretor se vale de um método inventivo quanto a situar sua audiência na história. A fotografia de Chayse Irvin é a responsável por muito da beleza e boa parte do eixo lógico do filme, pontuando em todas as suas cores, indiscretas e marcantes, os trechos em que a personagem central se deixa perscrutar pelo nome que a fez tão famosa, e em preto-e-branco as horas em que está mais para Norma Jeane, a garota assombrada por toda sorte de demônios numa Los Angeles sempre hostil.

Mesmo diante de um verdadeiro banquete tecnológico, Ana de Armas é, de longe, uma das melhores coisas de “Blonde”. A cubana já é uma das intérpretes a chegar mais perto da alma de Marilyn, daquela chama ardendo num coração frio, sufocado por décadas de abandono, isso para não mencionar a caracterização, incluindo os vivazes olhos de Bambi, castanhos e grandes, em substituição às esmeraldas caribenhas originais da atriz, e, claro, os vestidos e pulôveres deliciosamente justos, a fim de destacar os seios naturalmente grandes — numa época em que silicone era só para os incipientes automóveis, e olhe lá — e os quadris tamanho 44, excelente trabalho de Jennifer Johnson.

Esses elementos notadamente técnicos orientam o desempenho de De Armas a fim de ressuscitar Marilyn do jeito mais fidedigno possível, ainda que seja forçoso apontar que ha tanto de verdade aqui quanto em outras produções do gênero, como o recente “Elvis” (2022), releitura de Baz Luhrmann sobre a vida e a carreira do astro-rei do rock ao longo dos anos 1950 e 1960, ou “A Sangue Frio”, tanto o original de 1967, dirigido por Richard Brooks (1912-1992), como a versão de Harold Ramis levada à tela em 2004, mais centrada em Truman Capote (1924-1984), autor do livro que deu origem aos filmes. Marilyn, aliás, era a favorita de um dos pais do jornalismo literário e cinéfilo inveterado para estrelar “Bonequinha de Luxo” (1961), de Blake Edwards (1922-2010), papel que coube a Audrey Hepburn (1929-1993) numa performance arrebatadora.

Esse episódio ficou de fora de “Blonde”, que, como não poderia deixar de ser, prefere centrar fogo nos batidos escândalos sexuais da protagonista, como o conhecidíssimo caso com John Kennedy (1917-1963) e orgias com Charles “Cass” Chaplin Jr. (1925-1968). Dominik, contudo, merece (quase) todo o perdão pelo clichê ao repisar a natureza perdida de Marilyn, uma vítima de sua própria história.


Filme: Blonde
Direção: Andrew Dominik
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.